So quem passa por “elas” é que sabe…

É vulgar ouvirmos dizer “isto está mal feito”. A vida não deveria ser assim. Devíamos ter boa saúde do princípio ao fim e, quando terminasse o nosso prazo de validade, “desligava-se o interruptor”. Evitava-se sofrimento, solidão, dramas, misérias humanas e tudo o que há de mais negativo e pelo qual o ser humano passa no ocaso.. Mas, será que gostaríamos de trazer gravado na testa ou em qualquer outro local mais adequado, talvez no “fundo do pacote”, o prazo de validade? De saber em que dia deixamos de “ser consumíveis”? Não me parece. E ainda bem que não temos poder para alterar esse estado de coisas pois, quando o homem altera o equilíbrio da natureza, tendencialmente é para pior. Goste-se ou não, nos últimos anos de vida definhamos, perdemos energia, mobilidade, auto suficiência para as coisas mais básicas, muitas vezes feitos prisioneiros no próprio corpo, absolutamente dependentes dos cuidados de algum familiar ou amigo, conhecido ou estranho, amador ou profissional. Quando se tem a sorte de ter alguém que cuide de nós… Não há dúvida que os mais sortudos são aqueles que têm uma retaguarda familiar capaz de lhes assegurar os cuidados necessários em casa, no seu ambiente, sem o choque que é sempre a saída para um local estranho, por melhores condições que ofereça. Mas, compatibilizar as vidas dos filhos, hoje tão agitadas, com a disponibilidade para acudir às necessidades dos seus idosos doentes e dependentes, muitas vezes a exigir demasiado dos cuidadores, não é tarefa fácil. Ajuda, e muito, ter uma boa situação económica, para pagar a profissionais e assegurar esses cuidados em casa, mantendo o idoso ou doente no seu ambiente familiar. O que é bom. E os outros? Os que não têm dinheiro para “mandar cantar um cego”, quanto mais para pagar a um cuidador? Alguns jogam ao “vai e vem”. Levam-no para o hospital, porque não está em condições de ficar em casa, mas depressa o hospital lhe dá alta e o devolve à origem. As camas são precisas para outras patologias… E, uns dias depois, lá vai ele outra vez para o hospital… e volta. Como dizia um médico amigo, com um pouco de sorte, “pode ser que morra no caminho” e o “problema” fica resolvido. E haverá mais uma cama livre…

Os lares são uma solução para quem não tem retaguarda familiar ou quando não há condições na família, nem de tempo, nem de espaço, nem de saúde. Um bom lar, sendo à partida “o mal menor”, pode acabar por ser mesmo o lugar onde o idoso encontra tudo aquilo que precisa para um resto de vida tranquilo e digno. Mas, a grande maioria das pessoas que necessita dos cuidados de alguém ainda permanece em casa ou na de familiares, normalmente filhos. E é aí, na casa de cada um, que se encontram histórias reais de dedicação, sacrifício, dádiva, solidariedade e amor, muitas delas inspiradoras de tão fantásticas que são, que ainda nos fazem acreditar na bondade do ser humano. São os cuidadores informais, normalmente pessoas íntimas, que “passam as passas do Algarve” para tratarem do marido, da mulher, do filho ou de outra pessoa mais ou menos próxima. As mulheres são a maioria dessa legião de gente boa e abnegada, e é entre os mais pobres que estão quase sempre os casos mais dramáticos. Cada um é um caso mais complexo que outro. Só quando nos aproximamos e vivemos o problema, é que temos uma noção do que aquele(a) cuidador(a) passa… ou julgamos que sabemos.

Já Camões dizia: “Mais vale experimentá-lo que julgá-lo. Mas julgue-o, quem não puder experimentá-lo”. E nós, só julgamos, tantas vezes com um conhecimento muito superficial das situações. Julgamos que sabemos das dificuldades deste ou daquele caso mas, quase sempre, estamos muito longe da realidade, da dimensão dos obstáculos que o cuidador tem de vencer todos os dias. E são sete dias da semana, trinta dias do mês, trezentos e sessenta e cinco dias do ano, quantas vezes ao longo de anos e anos… Só quem realmente passa por elas é que sabe. Verdadeiramente. E falo assim porque também já sou um. Há oito anos, desde que a Luísa teve dois AVCs e duas pernas partidas. Mas, confesso, antes não sabia do que falava e, hoje, ainda pouco sei. Porque tenho o privilégio de ter algum apoio familiar e condição económica para ter outras ajudas profissionais. Com isso, sou essencialmente cuidador à noite e nos fins de semana. Mas já passei o suficiente para dizer que não é “pera doce”. Movimentar uma pessoa que quase dobrou de peso, incontinente, quase sempre fora da realidade, sem memória de curto prazo, já dá para imaginar (e digo só imaginar), como será a vida de quem faz isso todos os dias, vinte e quatro horas por dia, sozinho, com um doente em muito pior condição que a Luísa!!! E existe uma multidão de pessoas nessas circunstâncias!!!… Gente que tem uma vida de grande exigência, às vezes sujeita a pressão psicológica brutal, sem intervalos, períodos de descanso semanais, mensais nem anuais. E tantas vezes só, sem ajuda económica que lhe alivie o fardo, sem contar com o estado para quem o cuidador não existe (e há para aí tanto subsídio dado a quem não o merece nem dele seja necessitado…), sem ter tempo para se cuidar porque já abdicou de si. Daí a frequência de depressões e esgotamentos, físicos e psíquicos, nos cuidadores. Mas raramente têm quem cuide deles, acabando muito esgotados, incompreendidos, às vezes um alvo a abater.

Por isso, aqui fica a minha homenagem e profundo respeito por esses ignorados do sistema, cuja ação social e assistencial não tem preço e a sociedade não valoriza como devia. Talvez por serem anónimos, verdadeiros heróis anónimos de todos os dias…

Leave a Reply