O regresso dos “escarradores”…

Ggggggg, ggggggg, ggggggg… O homem fazia um esforço enorme ao puxar o catarro bem lá do fundo da garganta, de tal maneira que tinha a cara avermelhada. Era grande o ruído, mais parecendo a raspagem da trampa seca num cano de esgoto. Ggggggg, ggggggg… e o produto conseguido nesse esforço passou da garganta à boca, acumulou-se em cima da língua contra o palato e foi disparado contra a parede como o tiro de uma pistola. Olhei de lado e ainda vi o “escarro” a resvalar pela parede abaixo. Mais parecia uma lesma preguiçosa… Mas a “cobra cuspideira” seguiu em frente com toda a naturalidade, como se aquilo fosse um gesto vulgar, socialmente aceite. E, ao que parece, ainda é…

Quando andava na escola primária, havia disputas entre nós para ver quem… cuspia mais longe. Era um desporto barato, que só exigia uma boa produção de saliva (e nós produzimos um a dois litros por dia) e força no sopro. Para apagar os trabalhos que escrevíamos na “lousa”, nada melhor que uma cuspidela e a manga da camisola para limpar… Ninguém estranhava, porque o ato de cuspir era tido por normal. Cuspia-se em todo o lado. Os trabalhadores antes de pegarem numa peça de ferramenta davam duas cuspidelas nas mãos, esfregavam uma na outra e estavam prontos para a função. O escarro fazia parte da nossa tradição cultural. Nos edifícios públicos e até nas casas abastadas, existiam “escarradores” (ou escarradeiras), pequenos vasos metálicos ou de louça, abertos em cima, para ali se “depositar” o catarro salivar. O problema era acertar no alvo. Por isso, alguns “atiradores” optavam pelo “tiro fácil”, isto é, colocavam-se por cima do escarrador e só tinham de deixar cair a saliva, por gravidade, na vertical. Mas havia os especialistas no tiro difícil. “Disparavam” de mais ou menos longe como se de uma bala se tratasse e acertavam sempre… que o escarro não caía fora do escarrador. Por alguma razão, há volta deste havia sinais de “balas perdidas”… Mas era normal, sem qualquer nojo, repulsa ou má educação. Pelo contrário. É que os escarradores eram usados em nome do controle da propagação da tuberculose e outras doenças transmissíveis através dos fluidos… Conta-se que, nos anos 50, um lavrador alentejano foi jantar a casa de familiares ricos em Lisboa. Ora, estes preocupados com o facto do alentejano estar habituado no campo a cuspir para o chão, compraram um bonito escarrador de porcelana, que colocaram junto à mesa e ao lugar onde ele se sentou. Quase no fim do jantar, não aguentando mais, o alentejano desabafou: “Oh comadre, tire daqui o vasinho senão ainda lhe cuspo em cima”.

Mas, a sociedade alterou as regras da conduta e de convivência social. O que era prática comum virou ato repulsivo e condenável. Com o tempo, “limpar o canal” com uma boa escarradela passou a ser nojento e deselegante, tal como dar uma boa “fungadela” para o chão segurando a “penca” entre o polegar e o indicador, coçar algumas partes mais “privadas”, mas em público, ou ter um penico debaixo da cama para “alívio noturno”. Mas, apesar do manual das boas maneiras o não aconselharem, continua-se a cuspir em público. E até nem falo dos que “cospem no prato onde comem”, em sinal de ingratidão, nem mesmo dos que “cospem para o ar, porque o cuspo lhes pode cair na cara” (um bom conselho para os que falam e criticam demais). Falo dos que têm catarro, quer pelo tabaco, quer pelas crises de garganta próprias desta época, com tosse complicada que faz “puxar” pelas secreções agarradas na garganta. E, vai daí, em vez de as abafar no lenço de assoar (o que é uma chatice pois deixam o lenço colado…), atiram-se para o chão, em cuspidelas descaradas ou mais ou menos envergonhadas.

Mas, em pleno século XXI, existem numerosos lugares onde os “cuspidores” atiram para o chão todo o tipo de “bisgas” à frente de milhares e milhares de pessoas, sem qualquer preocupação com boas maneiras ou regras sociais. E, quem vê, não considera tais atitudes nojentas, porque “não vê ou não quer ver”. São “cuspidores oficiais” que a sociedade isenta dos comportamentos que exige para os outros. Em suma, têm “imunidade para/lamentar”, que lhes permite ser nojentos e mal educados. Ninguém os condena e podem cuspir em público. E isso vê-se todos os dias nos… campos de futebol. Pois é. Julgo que já todos nós reparamos que qualquer jogador, por mais educado ou rebelde que seja, por mais rico ou pobre, velho ou novo, vedeta ou Zé ninguém, nunca deixa o campo de jogo sem umas valentes cuspidelas, aqui e ali, como que a marcar terreno… tal e qual os cães o fazem, mas de outra forma. Pensando bem, não se conhece outra modalidade desportiva onde os atletas, para além de se permitirem coçar as partes baixas publicamente, cuspam a torto e a direito, despreocupadamente, sem terem em conta as boas maneiras, as convenções sociais, as transmissões televisivas que não deixam escapar nada e o poderem “banharem-se” no seu próprio cuspe. Será que isso ajuda ao jogo? Provavelmente, sim. E deverá haver mesmo alguma coisa que nos escapa para eles, após um esforço qualquer, uma jogada bem ou mal conseguida, lançarem uma “bisga”… Ao que parece, o cuspe (ou cuspo) está associado ao futebol e dele faz parte. Mais. A cuspidela é parte integrante do jogo e deve ser tida como uma boa prática desportiva, tal como a finta ou o remate. Se virmos bem, ela “remata” as jogadas de sucesso ou fracasso. Não importa. É que a cuspidela é livre e democrática e surge da boca de todos os jogadores, bons ou maus, pequenos ou grandes, artistas da bola ou nabos. E, nesse frenesi da cuspidela coletiva, os jogadores fazem do campo de jogo um ENORME ESCARRADOR, em cujo fundo atapetado (e bem cuspido) tantas vezes se rebolam…

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