E porque havia de ser a mim?

A vida é uma sucessão de factos e neles estão incluídas as últimas despedidas. Na maioria das vezes, nem nos apercebemos que é disso que se trata quando nos separamos de pessoas e bens. Muitas dessas situações, que acabaram por dar em adeus, aconteceram com um simples “até logo”, “até amanhã” ou “até um dia destes”. Mas, na verdade, transformaram-se num “adeus para sempre” quer porque horas depois sofreu um AVC, uns dias mais tarde teve um acidente e morreu, porque emigrou e por lá ficou ou por uma outra qualquer razão. E assim deixamos de poder rever algum familiar, amigo da infância, companheiro da escola, do liceu, da faculdade, da tropa, do desporto, da música ou de um qualquer grupo em que estivemos envolvidos ao longo da vida. Ou então, cada um conformado, ao ponto de me dizer ent de nós seguiu por diferentes caminhos que não mais se cruzaram, não havendo por isso lugar ao reencontro. É assim que a maior parte das vezes nos separamos das pessoas temporariamente sem tomarmos consciência de que, efetivamente, se trata de um adeus definitivo.

Numa despedida em que estamos conscientes de tal, o mais triste é a incerteza da volta porque, se tivéssemos a certeza de que seria um eterno reencontro, não haveria lugar à tristeza. Temos de nos acostumar às despedidas para poder seguir em frente, por mais ou menos dolorosas que sejam, caso contrário viveremos presos a uma eterna ansiedade que provoca mais ou menos sofrimento. Mas provoca.. A despedida está associada ao sentimento de perda, de algo que deixamos de ter, de possuir, se bem que toda a sensação de perda vem da falsa sensação de posse. Sim, porque temos em demasia a sensação que “temos” isto ou aquilo, este amigo ou aquele, esta coisa ou aquela. Como se fôssemos donos de alguma coisa…

Naquela casa, a notícia caiu como uma bomba: O chefe de família que tinha ido trabalhar pela manhã foi vítima de atropelamento e faleceu a caminho do hospital. O desespero instalou-se perante uma realidade que ninguém imaginava horas antes quando saiu de casa. “Porque havia de acontecer a mim” repetia indefinidamente a mulher dele em desespero sem obter qualquer resposta, como se alguém devesse responder. E porque não? Essa pergunta é colocada por milhões de pessoas nas mais variadas vivências de situações dramáticas, como se cada pessoa fosse a única a ser atingida por uma qualquer calamidade, acidente, doença ou morte de alguém que lhe é próximo. De certa forma, somos egoístas na nossa dor. Julgamo-nos únicos. E é natural pois as nossas dores são sempre as maiores, aquelas que vivemos e sentimos verdadeiramente, como nenhuma outra. Porque, com as dores dos outros, podemos nós bem… As nossas é que são uma chatice. Ficam-nos agarradas como lapas tal e qual nós ficamos agarrados a elas feitos escravos.

Já há muitos anos alguém me dizia que as doenças, os acidentes, o sofrimento e a morte vão um dia chegar a nossa casa. Não há como fugir-lhes, é só uma questão de tempo. É certo que alguns carregam desde bem cedo o fardo do sofrimento enquanto outros, por um capricho da sorte, só se confrontam com ele bem lá para diante. Mas, cedo ou tarde ele vai chegar e não adianta perguntar “porquê a mim”. Seria caso para responder: “Chegou a tua vez”. Mas veio uma dor atrás de outra, uma doença atrás de outra, uma morte atrás de outra morte, sem tempo para recuperar? “Não interessa, chegou outra vez a tua vez”.

Um dia conversava com um amigo que acabara de perder o filho muito jovem. Conversar com um pai que passa por uma tragédia destas, não é nada fácil. Que se pode dizer a alguém que perde um filho, algo contrário ás leis da natureza? Não há palavras. E sem palavras fiquei quando o encontrei com ar tranquilo e conformado, ao ponto de me dizer que estava em paz e tinha muito que agradecer a Deus. E nem precisei de lhe perguntar porquê. Com toda a calma e convicção, acrescentou. “Tenho muito que agradecer-Lhe, por todo o tempo que nos concedeu para estarmos juntos. E houve tantos momentos felizes”… A partir daí, a conversa foi longa e fácil, se bem que tenha sido ele quase sempre a falar. Entre muitas coisas disse-me que o que aconteceu com o filho foi na hora em que tinha de ser, porque tudo tem a sua hora. E os momentos felizes, os alegres, os tristes e os silêncios também têm a sua. Assim, não tinha razões para ficar zangado com quem quer que fosse, muito menos com Deus. Se para uns tal resulta do caminho que cada um escolhe, aquilo a que vulgarmente se chama o “livre arbítrio”, para outros é o destino ou determinismo ao qual ninguém foge. Para ele, “é simplesmente a mão de Deus e Ele sabe muito bem o que faz”. A verdade é que esses momentos acontecem a todos nós em qualquer hora, em qualquer dia, em qualquer lugar. “A questão”, dizia ele, “é sabermos tirar partido do tempo que nos é concedido e que nunca sabemos quanto durará. Quantas vezes, perante a perda de alguém, as pessoas choram, gritam e revoltam-se, como se não possam viver sem esse alguém. E, em muitos casos, apetece-me perguntar: Será que souberam valorizar o tempo que tiveram? É que não adianta pedir mais tempo se não se soube aproveitar todo aquele que nos foi dado. Seria só mais desperdício”… Quando o deixei, dei comigo a meditar sobre o “meu desperdício” e em como ele tem razão…

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