O automóvel entrou com excesso de velocidade no parque de estacionamento do supermercado e “enfiou-se” no lugar vago mesmo junto da entrada, como se lhe estivesse destinado. O motorista saiu do carro com ligeireza, trancou as portas e entrou na loja. Normal? De maneira nenhuma. Como não fosse suficiente a condução perigosa dentro do parque, estacionou num lugar reservado, mas não para ele. Bem visível pela pintura, a reserva era para… deficientes. Pela forma ágil como se movimentou, não tinha deficiência… visível. Mas era um “deficiente”… no respeito pelos outros, pelas regras da sociedade. E o curioso é que aquele era o único lugar vago dos quatro reservados a pessoas com limitações, junto da entrada do supermercado… Afinal, havia mais gente com o mesmo “tipo de deficiência”. E pude comprová-lo depois de fazer as compras, quando vi um dos outros “deficientes” a empurrar o carrinho das compras, meter os sacos no carro e deixar vago um dos tais lugares reservados.
O automóvel deveria ser um simples meio de transporte mas é usado demasiadas vezes como instrumento de força, vaidade, competição e, especialmente, como meio de manifestação da falta de respeito pelos outros. Ora, o respeito é um dos valores mais importantes do ser humano e é fundamental nas relações entre as pessoas. É um sentimento que leva ao cumprimento das regras, das leis, a ter consideração pelos outros. Aprendemos a tê-lo em criança, com os pais, e é algo que nos acompanha desde o berço e não se baseia em imposições mas na educação. Esquecemo-nos muito dele e, com uma “roda” na mão, é todos os dias… E isso acontece quando paramos lado a lado com outro carro para conversar, impedindo a circulação normal das outras viaturas, “esquecidos” dos outros… Ou quando estacionamos indevidamente sobre o passeio que é destinado aos peões, obrigando estes a caminhar pela rua… Ou quando estacionamos em segunda fila, impedindo a saída de carros corretamente estacionados…
Eu estava parado perto de um restaurante que serve refeições para casa, quando chegou um automóvel e parou por detrás dos carros que estavam na baía de estacionamento. O condutor saiu, trancou a viatura e “foi à sua vida”. Logo de seguida saiu do restaurante o dono de um dos automóveis “entalados”, com um saco na mão contendo o almoço ainda fumegante. Olhou ao redor à procura do dono da viatura que lhe impedia a saída, mas não viu ninguém. Entrou no carro e buzinou algumas vezes, mas nada. Ficou “a secar” durante mais de quinze minutos até aparecer o “amigo”, tão pouco preocupado que nem sequer pediu desculpa, acabando por ouvir “algumas” de que não terá gostado. Com toda a calma meteu-se no carro e foi embora, enquanto o outro fazia o mesmo, com “cara de poucos amigos” e não deveria ser por já ter o almoço frio…
Numa rua estreita de sentido único em Lousada, um condutor teve de parar quando encontrou um automóvel a obstruir a rua e com o dono lá dentro, à espera da mulher que tinha ido às compras. Esperou um pouco mas, como o homem no carro não lhe ligou nada, buzinou para lhe chamar a atenção. Mas, nada, o homem sentado ao volante não se mexeu. Voltou a buzinar por mais que uma vez, até que o homem sentado no carro parado abriu o vidro, pôs o braço de fora e fez um sinal com a mão que significa “passa por cima”. Impetuoso como é, o condutor não se fez rogado: Engrenou a primeira e acelerou, acertando em cheio no carro com grande estrondo. De dentro deste saiu o homem com as mãos na cabeça: “Ai o meu carro novo…” O condutor, que também havia saído, disse-lhe com ar cínico: “O senhor mandou-me passar por cima e eu tentei, mas não consegui…”
Algo semelhante aconteceu com uma mulher jovem e bonita cá da terra quando circulava numa rua do Porto. A fila era grande e o trânsito estava parado já há algum tempo. O condutor do carro atrás de si deu algumas buzinadelas, provavelmente a reclamar ou chamar a atenção para os responsáveis do engarrafamento lá para a frente da fila. Mas ela, farta de o ouvir buzinar, abriu o vidro e também fez o tal sinal de “passe por cima”. Mal a fila se começou a movimentar, o homem que buzinara aproveitou um espaço e colocou o carro a par do dela, abrindo o vidro. Como ela ainda mantinha o seu em baixo, ele não se inibiu de dizer àquela mulher jovem e vistosa: “Bem gostava de lhe passar por cima…”
Quando nos confrontamos com alguém à nossa frente que, por opção ou falta de agilidade conduz devagar fazendo com que o trânsito se arraste, numa reação instintiva pela nossa pressa permanente, entre dentes deixamos escapar “mexe-te lesma” quando não o manifestamos em buzinadelas ou impropérios. Parece mesmo que estamos quase sempre zangados com os outros, talvez até com o mundo. Estas são só amostras das múltiplas situações em que o carro, que deveria ser só um meio de transporte, se transforma numa arma de arremesso para agredir os outros quando os devíamos respeitar – diz-se que o respeito é algo que exigimos dos outros mas que não temos por eles. E temos tanto para aprender…
Um português está a trabalhar na Suécia e vai todos os dias para a fábrica à boleia, no carro de um colega sueco. No primeiro dia chegaram cedo e, apesar do enorme parque de estacionamento estar praticamente vazio, ele deixou o carro num dos lugares mais distantes da entrada. Nos dias seguintes continuou a estacionar longe da entrada das instalações, apesar dos muitos lugares vagos perto desta. Estranhando esse comportamento porque entre nós qualquer um faria o contrário, isto é, estacionava junto da entrada (mesmo nos lugares reservados a pessoas com deficiência…), perguntou-lhe porque razão o fazia. A resposta foi uma lição para ele e é uma lição para cada um de nós: “Como chegamos cedo, temos tempo. Por isso, estaciono nos lugares mais distantes porque, por um lado permite-nos fazer exercício caminhando e, por outro, deixamos os lugares mais próximos da entrada para aqueles que vêm atrasados e que não têm esse tempo para chegar a horas ao trabalho…” Algum dia chegaremos a ter esta mentalidade, este respeito???…
Em plena hora de ponta, dei comigo numa fila numa das ruas de Lousada. Quando consegui chegar ao entroncamento, os automóveis que vinham da minha esquerda também em fila, encostavam-se uns aos outros para impedir que do meu lado alguém entrasse. Fiquei ali uns minutos a resmungar, não propriamente pela demora no trânsito mas pela total falta de respeito dos condutores. Em muitas situações semelhantes, noutros locais, noutros países ( e mesmo nalgumas localidades do nosso), a regra é entrar um carro de cada fila, alternadamente e respeitosamente. Ali, a regra era “cada um por si”, o típico comportamento do “chico-esperto”.