A vida ensina-nos (e obriga-nos) a jogar muitas vezes “à defesa”, para nos resguardarmos. Como qualquer pessoa que precisa de se cuidar, também o faço sempre que necessário. A última vez que “joguei à defesa” foi durante a final do campeonato da europa de futebol que ocorreu em Paris há dias e que nos trouxe uma alegria enorme, um misto de sensações como há muito não tinha. Instalei-me em casa no sofá, à frente da televisão, aparentemente tranquilo mas, ao fim de alguns minutos de jogo e já com Ronaldo combalido do toque que sofrera, achei por bem mudar de canal… e mais tarde saberia o resultado. E foi assim que, eu e a Luísa, ficamos protegidos da tensão em que estaríamos a ver um jogo daqueles, ao longo de cento e vinte minutos, com os nervos à flor da pele.
Saltando de canal em canal, uma daquelas coisas que não gosto de ver quando é outro a ter o comando na mão, acabei por ver um filme sobre a história real do estudante e jogador de futebol americano Ernie Davis, o primeiro afro-americano a ganhar o Troféu Heisman, o mais importante prémio para o melhor jogador daquela modalidade universitária. Nasceu na segunda década do século passado no meio da pobreza e com dificuldades agravadas após a morte do pai quando ainda era criança. Numa América muito racista, sujeito ao racismo dos vizinhos, só quando se mudou com a mãe para Nova Iorque e se dedicou ao desporto é que veio ao de cima o seu enorme talento com a bola oval. E foram essas qualidades que o levaram a integrar a equipa de futebol americano da Universidade de Syracusa, pela mão do lendário treinador Ben Schwartzwalden, tendo-se tornado num dos maiores jogadores da história na sua posição. A sua integração não foi nada fácil e era evidente a segregação racial na própria equipa, onde só existiam mais dois negros. Mas, o seu desempenho extraordinário como jogador, fez com que viesse a ser aceite entre os “brancos”. Depois de fazerem uma série de jogos só com vitórias, tiveram o confronto final no Texas, um dos estados mais segregacionistas do país. A pressão racista manifestou-se logo no hotel onde nem sequer foi admitido e acabou por ficar separado dos colegas brancos. Essa pressão viria a atingir o pico já no estádio, com ameaças não só a ele mas a toda a equipa pela aceitação de negros. Foi neste contexto que, depois de marcar alguns pontos, colocar a sua equipa na frente e de ter sido massacrado intencionalmente por dois defesas para o “arrumarem” do jogo, o treinador entendeu substitui-lo para o proteger. Ausente do jogo, os adversários viriam a recuperar. No último intervalo, pediu ao treinador para voltar ao campo, acabando por levar a equipa à vitória apesar do ambiente hostil. O que mais retive de toda a sua história, foi o discurso emotivo e dramático do treinador aos jogadores durante o último intervalo, apelando à união do grupo, ao esforço físico e mental de cada um até ao limite alegando que, o que estava a ser jogado em campo não era um simples jogo de futebol americano que decidiria quem seria o vencedor da competição. Era muito mais do que isso. E os jogadores compreenderam… e ganharam.
Não pude deixar de pensar nas muitas semelhanças entre a história do filme que passou naquele canal, onde fui parar por mero acaso, e o jogo de futebol entre Portugal e a França. Coincidência premonitória? Não sei o que Fernando Santos terá dito aos jogadores antes do jogo e nos intervalos, que argumentos usou para os motivar porque, nestes momentos, a motivação é essencial. Seguramente o fez, ele que sempre acreditou na conquista do título. A verdade é que nesse jogo da final de Paris naquele estádio estava muito mais em jogo do que saber simplesmente quem marcaria mais golos e quem levaria o “caneco” para casa. Na mente de milhões de portugueses estavam outras razões para além do resultado. Em causa estava também a vontade de provar que não somos “cidadãos de segunda” a viver e trabalhar num país mais rico do que o nosso, aceites muitas vezes mas… para ficarmos no nosso lugar. A discriminação pratica-se de muitas formas… Em causa estava provar que as ofensas difundidas pela imprensa francesa, eram incompatíveis com o tão apregoado slogan de “liberté, egalité, fraternité”. Em causa estava provar que o “caneco” seria de quem o ganhasse em campo e não de quem tivesse melhor “nota artística”. O “futebol nojento” e as “favas contadas” não passavam de arrogância própria de quem “não pode nem sabe perder”. Em causa estava a desforra daquela semifinal da década de oitenta e de outros confrontos mais recentes. Mas, acima de tudo, neste jogo estava em causa a possibilidade de todos os portugueses se sentirem orgulhosos do seu país, da sua história, dos seus, o que era bem evidente na alegria incontida dos nossos emigrantes, pedaços do país espalhados pelo mundo. E foi por isso que a grande maioria dos portugueses desejou esta final com os franceses e com mais ninguém, na sua terra, na sua capital, com os holofotes mundiais ali apontados. Para podermos provar que somos tão capazes como eles, tão dignos de conquistas como eles, tão merecedores do respeito dos outros como eles, mesmo que sejamos tidos por mais pobres… E PROVAMOS…