Sentado no jardim, olho os muros que me rodeiam e me fazem sentir prisioneiro na minha própria casa. Não eram assim quando a construi pois até o portão para o carro não passava de uma cancela baixa, feita de tábuas estreitas, separadas, por onde passavam cães e gatos, quase sempre aberta de par em par. Aberta ficou por longos anos até me cansar dos abusos, de me entrarem por lá dentro com o carro para darem a volta… em cima do relvado. Por causa dessa e de outras, desapareceram as cancelas de madeira para dar lugar a portões de ferro mais altos e, com eles, subiram os muros…
Ao pensar nestas “muralhas” que criamos, regresso à infância e vejo-me a correr livre pela aldeia, onde também havia muros, mas pequenos, para marcar os limites da propriedade e protege-la dos animais. Era com cancelas velhas de madeira que se fechavam as entradas, com um “trambelho” como fechadura. Muros altos, vedações altas, eram prerrogativa de “fidalgos” para manterem a “plebe” à distância e se “fecharem” na sua importância…
A porta da cozinha da casa dos meus pais estava sempre aberta ou, simplesmente encostada, apesar da chave ficar na fechadura, chave que mais parecia um adereço. Mas não acontecia só na casa dos meus pais. Em toda a aldeia, as portas de entrada permaneciam abertas pois ninguém tinha preocupações de segurança, nem sequer de proteger bens e pessoas. Todos confiavam em todos.
Podia-se deixá-la “escancarada” o dia todo que não entrava ninguém para roubar. O sossego da aldeia só era quebrado pelas conversas dos homens e mulheres à porta das casas, pela gritaria e gargalhadas das crianças nas suas brincadeiras, pelo “bom dia” ou “boa tarde” de quem se cruzava a cumprimentarem-se, pelo ladrar dos cães, o cacarejar das galinhas, o chiar das rodas dos carros de bois carregados de mato. Na aldeia conhecíamos toda a gente e sempre que um estranho aparecia por lá, era logo sinalizado, controlado pelos olhares de curiosidade (e de coscuvilhice) dos vizinhos até identificar o “intruso”, de onde era e ao que vinha.
Os vizinhos conheciam-se, eram da família mesmo que o não fossem, faziam parte das nossas vidas porque se podia contar com eles sempre que fosse necessário. Fosse a ajudar num parto ou na sacha do milho, a oferecer couves do seu quintal ou a “dar uma mão” na vindima, a vida da aldeia tinha muito de comunitária, de ajuda mútua, com o sentimento de que “pertenciam” uns aos outros . Até nós, crianças, éramos “vigiados” por muitas mulheres porque cada uma delas tinha um pouco de “nossa mãe” sempre que fosse necessário proteger-nos ou controlar-nos. Por tudo isso, não existiam “muros” entre vizinhos, entre habitantes da mesma aldeia. Só os “fidalgos” se podiam dar a esse “luxo”…
Mas, mudaram os tempos, mudaram as pessoas e as relações entre si, mudaram os valores e, à medida que a sociedade “evoluiu” e se foram construindo novas casas, mais e mais modernas, os “muros” foram subindo, subindo, alegadamente em nome da privacidade e da segurança e, porque não, da importância. Os vizinhos foram sendo afastados aos poucos, olhados por cima dos “muros” até deixarem de ser vistos, quando não ignorados, perfeitos desconhecidos que nem se cumprimentam. Nos prédios de habitação coletiva nem se sabe quem mora na porta da frente ou do lado, ignora-se quem entra, sai ou “viaja” connosco no elevador, sem um “bom dia”, um “olá” ou um simples aceno com a cabeça. Será só porque temos medo? Será que vivemos prisioneiros dentro das nossas casas ou dentro de nós mesmos e não queremos partilhar a vida com os nossos semelhantes, com aqueles que nos rodeiam com medo de nos “expormos” e de mostrarmos a nossa “nudez”, o nosso egoísmo e a nossa própria solidão?
Na minha infância, as pessoas sentavam-se à porta de casa ao entardecer e ficavam a conversar com os vizinhos sobre as suas vidas, os seus problemas, “despindo-se” de preconceitos, de egoísmo e de falsas privacidades. Claro, com isso toda a gente sabia da vida de toda a gente, com as vantagens e inconvenientes próprios dessa informação global que alimenta a “coscuvilhice”. Era a fatura que se pagava por pertencer a esse mundo comunitário. Em contraponto, nas cidades e grandes urbes as vidas passaram a ser impessoais, verdadeiramente anónimas, tendo-se a “vida privada” preservada mas perdendo-se a “rede de vizinhança” que estava sempre presente para ajudar ao primeiro grito de alerta, pedido de socorro ou sinal de alarme. Mas esse “isolamento” não se ficou pelas grandes cidades pois, pouco a pouco, foi chegando às vilas e aldeias do país, fazendo com que se construíssem muros, muitos muros, reais e virtuais, cada vez mais altos, cada vez mais desencorajadores. Até porque pensamos que assim estaremos mais seguros… Mas será que estamos? Ao que parece, não – estava a ver há instantes na televisão as imagens de uma casa particular rodeada de muros, arame farpado e portões altos, câmaras de vigilância e até guardas, mas nem isso a livrou de ser assaltada, mesmo com os proprietários lá dentro.
Como diz Moita Flores, temos de voltar a criar a “rede de vizinhança” conhecendo os vizinhos, os seus carros e filhos, ter os seus contactos, para sermos os olhos e os ouvidos uns dos outros, ainda que não sejamos visitas de suas casas. E, sobretudo, eliminar os “muros” que nos separam e construir as “pontes” que tanta falta fazem… Seremos capazes de recuperar essa riqueza???