Outrora, quando as crianças faziam a pergunta incómoda “de onde vêm os bebés?”, a resposta era quase sempre a mesma: “De França, no bico de uma cegonha”. As crianças viam satisfeita a sua curiosidade e estes ficavam aliviados torneando a questão. Ora, como ainda não deixei de ser criança e mantenho a curiosidade própria delas, resolvi fazer uma “visita” a essa “França” virtual, local de “origem de todos os bebés do mundo”, terra imaginária como aquela onde vive o Pai Natal. Para tal, “peguei na trouxa e zarpei…”, não a voar no trenó mas a “surfar” nas asas do pensamento.
Depois de uma longa viagem ao chegar, a primeira visão que tive foi de um cenário aterrador com imensas “unidades fabris” fechadas e abandonadas, muitas delas já cobertas por silvas e todo o tipo de vegetação que se foi apoderando do local, fazendo lembrar a zona do Vale do Ave e outras regiões do país na era pós industrial. Pelas ruas esburacadas vagueavam bandos de cegonhas “escanzeladas”, com as penas sujas e a cair, num sinal evidente da crise e do desemprego. Dirigi-me ao “posto de turismo” implantado na praça principal, também ele revelador da situação que a cidade vivia, onde me aconselharam a falar com o presidente da Associação Industrial de Bebés para colher informações. E assim fiz.
Começou por me dizer: “Aqui só fabricamos bebés “por encomenda”, sendo o prazo de entrega normal de nove meses. Só em caso de acidente ou percalço é que a entrega é antecipada. O bebé entra na linha de produção no momento em que o casal “sela” o pedido, sendo que muitas vezes o fazem sem saber, perdidos nos “preliminares”.
Longe vai o tempo em que todas as unidades estavam a produzir em pleno, quando a maioria dos casais encomendava um bebé por ano, chegando com facilidade à dúzia e mais. Mas, à medida que as sociedades foram evoluindo, as encomendas caíram e com ela a nossa produção, ano após ano, o que levou ao encerramento de inúmeras instalações, hoje votadas ao abandono. Tivemos de mandar para o desemprego mais de metade das cegonhas.
Sabe, noutros tempos, quando um qualquer casal de “clientes” se “envolvia em jogos sexuais”, havia fortes possibilidades de se concretizar a encomenda mesmo sem o desejarem, pois “trabalhavam sem rede” e, diz o ditado que “quem anda à chuva, molha-se”. Daí que “não tínhamos mãos a medir” para aviar tanta “solicitação” e, por isso, as unidades fabris estavam a funcionar dia e noite e todas as cegonhas eram poucas para as entregas. Só que, a partir do momento em que alguém descobriu a forma de transformar o “trabalho da encomenda” em “entretenimento puro” com vários tipos de “seguro contra imprevistos”, o negócio “foi à vida”. E, mesmo com a “encomenda” feita e já depois de nos ser “remetida”, vocês também arranjaram maneira de a poder suspender “no dia seguinte”, quando não mesmo uns dias ou semanas depois. Com tudo isso, o “negócio foi à vida”. Olhe, o vosso país passou a ser um dos piores clientes. Será por causa da crise, por falta de “caneta” para assinar o pedido ou pelos “custos que o produto acarreta depois”? Já não sei que lhe diga… Mas a grande quebra desta “indústria” deu-se quando os chineses foram proibidos de fazer só uma por casal. Está a ver o filme? Sempre que enviávamos um bebé para lá, “fechava-se” a capacidade daquele casal “assinar” novo pedido. E foram milhões e milhões de bebés que deixaram de ser produzidos, uma quebra brutal na “carteira de encomendas” que precipitou a “crise” já sentida nos países mais ricos – o que é um contrassenso. Com a “descoberta” das diversas “fórmulas” de impedir que pudesse resultar em “encomenda” o simples “molhar da pena no tinteiro”, os casais estabeleceram novas prioridades, que colocam o emprego, a carreira e o desejo de uma vida mais despreocupada à frente da paternidade, deixando esta para mais tarde e, quase sempre, reduzida ao filho único, quando não abdicam por completo. O inverso do que acontecia antigamente. E até os pedidos “acidentais” caíram muito comparados com os de outrora. Só para perceber como é que os “acidentais” aconteciam, deixe-me contar-lhe o que se passou há décadas numa aldeia de Lousada: Uma moçoila que ficara órfã vivia com a avó numa casa térrea e pobre, com “estrumeira” à porta da cozinha, onde se despejava tudo e “faziam as necessidades” na falta de WC. Em idade de namorar, a avó não lhe dava espaço e controlava-a totalmente, deixando-a falar com o namorado só da janela, enquanto ela vigiava noutra. Um dia a avó descobriu que a neta nos tinha enviado uma “encomenda” já há alguns meses… C’os diabos, “caiu o Carmo e a Trindade” e a avó só perguntava “como foi possível”? Mas foi, de forma simples e um tanto estranha. À noite, as duas rezavam o terço. Quando a avó dizia uma oração, a neta respondia com outra. Às tantas, a neta fez sinal à anciã que ia lá fora “fazer as necessidades”, mas a reza continuou. Enquanto da cozinha a avó dizia “Avé Maria…”, do lado de fora, na “estrumeira”, a neta respondia “Santa Maria…”. Só que, a “oração” da neta era outra… e, talvez por isso, foi “abençoada” com um bebé meses depois, para espanto da avó…
De “regresso” a casa, senti que o “tempo” das cegonhas trazerem os bebés de França, chegara ao fim. Como chegou o fim de muitos outros “tempos”…