Foi ao ver o caseiro duma quinta a vindimar com a mulher e a filha e saber por ele que era o único pessoal com que podia contar, já que o vinho não dava para contratar gente de fora, que a memória me levou às vindimas da minha infância onde se juntava um “rancho” de gente voluntária, suficiente para resolver o problema de qualquer lavrador. Os homens vindimavam, as mulheres carregavam os cestos à cabeça para o carro de bois ou diretamente para o lagar e nós, crianças, apanhávamos os bagos (para nos estimularem, diziam-nos: “Conheço um senhor que fez dez pipas de vinho só com bagos…”). Enchia-se o lagar e só depois as dornas, sendo as uvas esmagadas por “pisadores” de calças arregaçadas e pés descalços “lavados” num alguidar (dizia-se que o vinho desinfetava tudo), cantando ao som da concertina ou da viola, enquanto comiam sardinhas assadas sobre um naco de broa. Na região, praticamente só havia vinho tinto, muito carregado e de baixa graduação. O pouco vinho branco das quintas era quase todo para os senhorios. A “paga” do pessoal era a comida farta, uma bênção nesses tempos verdadeiramente difíceis.
O vinho era “A Bebida”, consumido por todos como parte obrigatória da refeição. Por alguma razão o slogan publicitário dizia que “beber vinho, é dar de comer a um milhão de portugueses”. Para além das quintas, em todos os quintais havia videiras, plantadas antes de se “plantar” a casa. E, para guardar o vinho, tinham de existir pipos, pipas e toneis em madeira. Não sendo os meus pais agricultores, cresci no meio rural onde pipos e pipas eram coisa comum à maioria das casas, pois toda a gente tinha algum dos dois. Estas vasilhas sempre me atraíram, pelo formato, pela capacidade de armazenar líquidos sem verter, pelo modo como os carpinteiros/tanoeiros as reparavam, como faziam as aduelas curvando a madeira e as substituíam, como apertavam os aros de ferro, pela facilidade como carregavam aqueles “monstros” de mais de meia tonelada nos carros de bois e as colocavam em cima das vigas de madeira na mercearia do meu tio Peixoto. Para provar o vinho, fazia-se um furo na parte superior do tampo da frente da pipa com uma verruma que se tapava com o “esquiço”, um pauzinho aguçado. Era por esse pequeno orifício que se tirava vinho enquanto a pipa não tivesse torneira, aliviando ligeiramente o “batoque” de cima para entrar o ar por forma a que o esguicho fosse regular e constante. Gostava de ver o meu tio a “meter” a torneira na pipa e ficava sempre surpreendido por o conseguir fazer sem verter uma gota de vinho.
Foram muitas as vezes que confraternizei com amigos encostado ou sentado nas pipas e bebendo por uma caneca de porcelana. Recordo com especial prazer momentos desses na adega do senhor Melo, em Bustelo, comendo salpicão com broa e azeitonas na companhia do meu irmão e do Nelo, Eurico e Zé, seus netos. Se nós gostávamos desses momentos de convívio, muito mais prazer retirava o senhor Melo deles, uma oportunidade que “aproveitava” bem para fugir ao “controle” da esposa. Que saudades…
E lembrei-me disto porque tive de ir a casa de uma família humilde e, quando me preparava para regressar, o dono da casa convidou-me a entrar para comer qualquer coisa. Acabei por aceitar dada a insistência e manifestação de que ficaria melindrado se não aceitasse. Na mesa da cozinha a esposa já estendera uma toalha branca de linho, que ainda mais me avivou velhas recordações, e colocara um salpicão partido às rodelas, broa e azeitonas, para além de uma garrafa de vinho espadeiro da região que ele fez questão de me dizer que fora engarrafado por si. Não fiquei só encantado pela simpatia do gesto mas, também, por me transportar ao passado, a um tempo em que na maioria das casas se recebiam as visitas com esta franqueza e este tipo de merenda, sabendo-se que muitas vezes ofereciam o que eles próprios não tinham para comer, pois tinham de vender as melhores partes do porco para sobreviverem… Nesse tempo, oferecer aos visitantes um copo de vinho e uma “bucha”, sendo um gesto simples, normal e comum, era um sinal de apreço e respeito pela visita, uma manifestação de orgulho e da alegria de receber.
E isto relembrou-me ainda o ano em que fiz parte da comissão organizadora das Festas do Senhor dos Aflitos, um grande grupo de jovens, já lá vai um “tempo”… Entre outras coisas, tive de fazer o peditório em Macieira, a minha terra porque, potencialmente, podia arrecadar mais dinheiro que qualquer outro. Arranjei dois amigos para me acompanharem na “função” mas a missão não correu como eu previa. Porquê? Porque na maioria das casas onde entrava, quando dizia ao que ia ouvia um coro de desagrados e reclamações em relação à Vila. “Mas”, diziam, “tenho muito prazer em recebê-los em minha casa”. E, virando-se para a cozinha, gritavam: “Oh Maria, traz daí uma garrafa de vinho e uma bucha…” E nós tínhamos de comer a broa, o salpicão, as azeitonas e… beber um copo. Casa sim, casa sim, rica ou pobre… E, um copo nesta casa, outro na seguinte e mais outro e outro e outro, obrigou-nos a desistir a meio da tarde do primeiro dia por… “excesso de bom trato”. O que era previsível fazer num dia, demorou três, e os “culpados” foram os meus conterrâneos, pela “arte de bem receber”. A anos de distância, ainda hoje me emociono por tanto nobreza de alma, da muita gente simples e pobre que oferecia o seu melhor. Uma lição que não tem preço…