Quem vê caras, não…

Diz o povo que “quem vê caras não vê corações”. Mas, a verdade é que é o povo que põe rótulos nas pessoas apesar de as não conhecer, somente em função da cara: “Aquele tem cara de sério e honesto” e “o outro tem cara de vigarista”. E serão? Provavelmente, não, mas esses são os estereótipos que se criam e que nos levam a “classificar” gente que não conhecemos. Para um velho amigo meu todos temos cara de ladrão porque, diz ele, quem não tem cara de ladrão… só pode ter cara de burro.

A cara, normalmente reflete aos outros uma “imagem”, se bem que muitas vezes não corresponde à realidade. Por se ter um rosto sorridente não quer dizer que se seja simpático e, muito menos, boa pessoa. Tal como, aqueles cujas feições são sérias e fechadas não podem ser catalogados de maus e antipáticos. No entanto, temos tendência a “julgar mesmo sem conhecer”. Ora, mesmo aqueles que aparentam ser rigorosos, difíceis ou inacessíveis, são pessoas como as outras, podendo ser simpáticas e de bom trato.

Um comerciante de adubos que vendia produtos da empresa onde eu trabalhava, estava a tentar angariar a encomenda de um grande agricultor alentejano. Para o conseguir, solicitou apoio técnico à nossa empresa no encontro com o cliente que iria ocorrer em Évora. Foi destacado um colega, tendo-lhe sido fornecidas algumas indicações pelo distribuidor, nomeadamente o dia, hora e local onde se realizaria a reunião. Além destas, havia uma nota especial referindo que o agricultor era uma “pessoa difícil” e exigia pontualidade. Ora, ele tinha dificuldade em cumprir horários pelo que, à hora marcada, não apareceu, e o comerciante “viu-se e desejou-se” para convencer o agricultor a esperar. Só quarenta minutos depois chegou com um ar esbaforido e aflito. “Que raio se passou para aparecer a esta hora e assim”, perguntou-lhe o agricultor. “Desculpe, mas a viagem foi tão complicada que, na curva da ponte, até entrei com um pneu no ar”, disse-lhe ele. “Oh, homem, também não era caso para tanto. Ainda podia ter tido algum acidente”, retorquiu o alentejano já num tom menos severo. Então, ele aproveitou a deixa e clarificou: “Não, não foi da velocidade. O pneu que eu trazia no ar … era o suplente.” E o agricultor desfez-se a rir, deixando a porta escancarada para o negócio que se seguiu.

Quando fui com outros responsáveis do Clube Automóvel de Lousada a Paris, assistir a uma prova de Ralicrosse com o objetivo de convidar os pilotos a participarem na corrida de candidatura ao campeonato da Europa que iríamos organizar semanas depois, alguns pilotos aconselharam-nos a pedir a colaboração do observador da FIA ali presente, um alemão austero e tido como muito difícil. Hesitamos perante o seu ar impenetrável, cabelo “espetado” e bigode fino, mas acabamos por abordá-lo já que nada tínhamos a perder. Ouviu-nos, mas parecia que estávamos a lidar com um bloco de gelo, embora fosse objetivo, rigoroso e preciso. Verdade é que, a partir desse primeiro contacto “gélido”, muitos outros se seguiram e entre nós nasceu uma enorme e profunda amizade pessoal que só foi interrompida com a sua morte súbita anos mais tarde. Ainda hoje recordo com muita saudade o Bernd…

Quem não andou anos a evitar alguém de quem tinha péssima impressão apesar de nunca ter falado com ele, com base no aspeto, no olhar ou numa palavra e, depois de uma primeira conversa, às vezes acidental, percebeu como estava enganado? Carregamos em nós alguma sensação de mal estar em relação a pessoas com quem nunca falamos e de quem nada sabemos, com base nos “modelos” que criamos na mente pelos quais classificamos as pessoas de boas ou más. Temos até medo de falar com algumas… Já me aconteceu adiar esse primeiro contacto por pensar que ia encontrar o “bicho-papão”, para vir a descobrir que, afinal, era só medo meu, esquecendo a máxima de “faz o que receias e o receio deixará de existir”. Aliás, isso também acontece com algumas pessoas que precisam de falar comigo num ou noutro momento e que acabam por o confessar. Para essas, também estava no catálogo dos maus e inacessíveis…

O inverso também se coloca. O meu primo estava com o João no café Avenida quando entrou um homem que, ao vê-lo, fez uma algazarra como se tivesse encontrado o maior amigo, dando-lhe um grande abraço. Apresentou-o ao João e conversaram animadamente alguns minutos, até que o fulano se despediu e foi embora. Mal acabara de sair, o meu primo disse ao João: “Toma atenção, este tipo é um vigarista. Nunca lhe emprestes dinheiro, pois ele não paga a ninguém. E, cuidado com as manifestações de amizade em que ele é especialista”. Algum tempo depois reencontraram-se no mesmo café e o João confidenciou-lhe: “Você tinha razão. O fulano deu-me o golpe”. “Mas como é que isso foi possível se eu te avisei”, disse-lhe o meu primo. “Pois é, ele apareceu e abraçou-me como se fosse meu maior amigo e me conhecesse há muito tempo. Fez-me uma festa de tal maneira que, quando me pediu o dinheiro, eu não podia dizer-lhe que não. E com aquela cara…”, disse o João conformado.

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