Um acaso chamado… David

Há quem diga que “o acaso é o grande mestre das coisas” e foi nessa linha de pensamento que La Rochefoucauld se manifestou ao afirmar que “apesar dos homens se gabarem dos seus grandes feitos, estes não são, a maior parte das vezes, resultado de grandes desígnios mas tão somente do acaso”. Para o confirmar, podia citar um rol de acontecimentos acidentais que originaram produtos e empresas de grande sucesso.

Em contraponto, há quem entenda que nada acontece por acaso, que tudo tem um sentido e que a maioria das invenções, das grandes ideias e descobertas foram conseguidas à custa de muito esforço, pesquisa e trabalho. Que não existe a sorte, pois há um significado por detrás de cada ato. Thomas Edison dizia mesmo que “a maioria das descobertas são resultado de 99% de trabalho duro e só 1% de genialidade” o que, com o “somente aqueles que nada esperam do acaso são donos do destino”, secundariza a sua importância.

Mas existe uma filosofia intermédia que reconhece a importância dos acasos quando estes encontram o observador certo. Daí a afirmação de Pasteur: “Os acasos só favorecem os espíritos preparados”. Assim, o sucesso dos acasos só é possível se encontrar quem se saiba aproveitar deles, até porque há uma componente aleatória no processo da descoberta e as pessoas devem estar atentas a todo o instante para reconhecer uma coisa nova. Como em tudo na vida, dos negócios às iniciativas, apesar do trabalho e preparação que é exigível, também é necessária a sorte, embora seja preciso saber aproveitar a oportunidade sempre que ela se ofereça.

E toda esta “filosofia” vem a propósito da forma como surgiram os desportos motorizados e a pista da Costilha em Lousada. Tendo eu sido o “culpado” (para o bem e para o mal) e como ainda estou cá para o contar, é melhor escrever a história porque pode ser mais um contributo para a teoria do acaso…

Fui presidente da Associação de Cultura Musical de Lousada (ACML) “empurrado” pelo meu amigo Jaime Moura que se quis libertar do “fardo” logo no final do mandato. Fundada três anos antes pelo Paulo Cunha para salvar a Banda de Lousada, tinha nesta um “buraco negro orçamental” com grandes prejuízos anuais. A minha função principal era “inventar” receitas para conter tal “buraco”, o que não era nada fácil. Assim, organizamos bailes, provas de perícia, gincanas, tiro aos pratos e outros eventos, tudo o que pudesse gerar alguns “patacos”. No final do mandato só consegui arranjar quem me substituísse na liderança da ACML na condição de me manter na direção com o objetivo principal de continuar a organizar eventos e “cavar” massa para “dar de comer ao prejuízo”. Mas, na verdade, cada organização não rendia mais que dez a vinte contos, muito pouco para quem precisava de tapar um “buraco” sempre superior a trezentos, o que nos obrigava a multiplicar as iniciativas.

Já levava quatro anos destas andanças pela ACML quando um dia tive um problema elétrico no carro e fui à Gatel, uma oficina auto à saída da Vila. Enquanto o senhor David procedia à reparação, fiquei por ali à espera e fomos conversando, o que ele gostava de fazer. Entre outras coisas falamos da ACML e, ás tantas, disse-me: “O senhor anda a organizar provas de perícia e de tiro aos pratos para arranjar dinheiro à Associação mas, para além de muito trabalho e chatices, com certeza não lhe dão grande resultado. Se quiser mesmo fazer massa a sério, organize provas de motocrosse. Isso, sim, vale a pena.” –Oh senhor David, como é que o senhor sabe disso? E ele foi pronto na resposta: “Porque foi assim que em Guilhufe arranjaram dinheiro para a obra paroquial e só pararam porque morreu um espectador numa das corridas. Mas que aquilo dá muita massa, não tenha dúvidas”.

O “acaso” esbarrara comigo e, não sendo eu um especialista na modalidade, havia uma coisa nas palavras do senhor David que vinha de encontro à minha necessidade, isto é, às necessidades da ACML: Dinheiro. Saí da oficina a pensar no que ele me dissera e dei comigo a dar voltas à vila à procura dum terreno onde fosse possível criar uma pista de motocrosse. Acabei por parar diante de uma mata onde ocorrera um incêndio recente e por isso tinha sofrido “corte raso” das árvores, deixando “a nu” um relevo muito acidentado e com uma pequena linha de água a atravessá-lo, o que me pareceu excelente. Numa entrada da Vila, com excelente localização e bons acessos, era mesmo aquilo que eu procurava. Estava diante da mata da Costilha e acontecera o segundo “acaso”.

Dali fui de imediato à procura do Jaime Moura para lhe cobrar o favor que me ficara a dever quando me convenceu a substitui-lo na ACML. E, claro, aceitou “pagar a dívida” aderindo àquilo que se tornaria numa grande aventura, um ciclo vertiginoso de eventos desportivos que começaram com as motas e evoluíram para os automóveis e não só, num crescendo incrível que nos proporcionou espetáculos desportivos, nacionais e internacionais, memoráveis (e que continuam…). Certo é que, o “acaso” daquela conversa (a que se juntou depois muito, muito trabalho de tanta gente, na sua maioria, anónimos) resolveu por completo os problemas financeiros da ACML… até rompermos com a direção desta por… um outro “acaso” (ou talvez não), fazendo nascer o Clube Automóvel de Lousada.

Nesta crónica “ao acaso”, por mero acaso sobre a “teoria dos acasos”, fica-me uma dúvida: Será que o “acaso” pelo qual ainda hoje se ouvem “roncar os motores” lá para as bandas da Costilha é fruto de um “acaso” que me usou para os seus fins ou terei sido eu a aproveitar um “acaso” chamado… David?

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