Seremos mesmo borlistas?

Na minha adolescência gozei algumas férias de verão em casa do meu primo Albino, em Matosinhos, ocupando o tempo na praia. Ao Porto ia uma ou outra vez porque o dinheiro era pouco e não podia desperdiça-lo em transportes. Por isso, invejava os miúdos da cidade que viajavam à borla pendurados no elétrico, apesar de nas paragens o revisor os fazer saltar. Mas, mal o elétrico retomava a sua marcha, com uma pequena corrida voltavam a agarrar a boleia…

Fui borlista anos depois num Arraial Minhoto organizado na Adega Cooperativa de Lousada, tendo entrado pela porta do fundo com um grupo de amigos ajudados por um funcionário, já que não tínhamos dinheiro para o bilhete.

Os “borlistas” ou “penduras”, são pessoas que querem viajar, assistir a um espetáculo ou participar no que quer que seja, sem pagar. Para muitos, conseguir fazê-lo “à borla” é, só por si, um prazer redobrado.

Quem visita Itália e viaja em transportes urbanos numa qualquer cidade, encontra com certa frequência no interior dos autocarros, cartazes com a indicação expressa de que os “portugueses” apanhados sem bilhete serão severamente multados.

Para qualquer bom lusitano, isto de referir tão claramente os “portugueses” é, no mínimo, discriminatório. Foi também assim que o entendeu um cônsul de Portugal em Milão e, por isso mesmo, protestou e acusou o Município de Vincenza de ter declarado guerra aos portugueses de forma ostensiva. No entanto, o nosso “D. Quixote” esqueceu-se de esclarecer antecipadamente a situação e acabou por “ficar mal na fotografia” quando lhe disseram que “portugueses” significa “borlistas” em italiano e não tem qualquer conotação connosco.

Pertenci ao grupo que fundou e arrancou com o Clube Automóvel de Lousada e uma das muitas responsabilidades que assumi foi organizar a segurança, vigilância e controle de entradas. Tinha a difícil tarefa de tentar reduzir ao mínimo o número de “borlistas” tendo em conta que, para assegurar a sustentabilidade do clube, era importante que todos pagassem, o que não era nada fácil. Normalmente o sistema de segurança e vigilância era feito com o recurso a elementos da GNR e de uma empresa de segurança, que colocava na periferia do circuito de forma intercalada para maior eficácia. Mas nem sempre funcionou pois cheguei a encontrar homens da empresa de segurança sentados na bancada a ver a prova, longe do local onde deveriam estar, a darem a mão a “penetras” para lhes facilitar a borla, a fazerem sinais indicativos da forma como, quando e onde deviam “furar”, etc., etc..

Criei múltiplos esquemas para impedir que fosse possível passar sem bilhete ou convite, mudei cartões e métodos de controle e organização, mas vinha sempre a detetar insuficiências ou falhas face a novos estratagemas imaginados pelos “borlistas” que apresentavam todo o tipo de cartões, uns legais mas de entidades e instituições que nada tinham a ver connosco, e outros falsificados de forma grosseira ou com técnica apurada. Havia de tudo.

Um dia recebi uma chamada telefónica de um conterrâneo a trabalhar em Lisboa. Esteve mais de meia hora ao telefone a tentar convencer-me. Por ser natural de Lousada achava que tinha o direito “natural” de ser convidado. Num tempo em que as chamadas de Lisboa eram caras, gastou mais dinheiro no telefonema do que na aquisição do bilhete. Só agora, há distância de décadas, é que me apercebi que deve ter usado o telefone da empresa e, por isso, usou uma borla para tentar outra borla…

Dias depois de uma prova europeia pessoa amiga confessou-me que tinha ido, gostara muito e até entrara sem pagar. “Como? Já agora, diga-me lá como conseguiu ” pedi-lhe. E ele contou.

Nesse domingo apareceu-lhe em casa um amigo que já não via há muito tempo, convidando-o para ir à corrida. Sem suspeitar do que iria acontecer, aceitou acompanhá-lo pois era uma forma de estar com ele e apreciar o evento. O amigo era deficiente motor e conduzia um carro adaptado, que levou até à entrada do parque reservado à organização, só acessível aos possuidores de determinados cartões. Ao chegar sem qualquer tipo de identificação, fez um sinal enérgico com a cabeça aos seguranças como quem diz, “abram”. E eles, simplesmente, abriram e deixaram-nos entrar…

Mas, os maiores “borlistas” eram sempre alguns detentores de um ou outro “poder” que, usando e abusando desse mesmo “poder”, “pediam” convites para os filhos, os amigos dos seus filhos e outros “seus”, com uma desfaçatez que nem dava para acreditar…

Dizia uma mãe dinamarquesa: “Posso até andar de comboio sem bilhete, mas nunca o faria com os meus filhos. Não posso dar azo a que aprendam coisas erradas comigo”. Ao que parece, somos diferentes, muito diferentes. É tudo uma questão cultural…

Agora que o Rali de Portugal volta à pista da Costilha para repetir a Superespecial que desenhei há cerca de duas décadas perante a incredibilidade do meu amigo Jaime Moura (só acreditou depois de percorrermos a pé todo o traçado), seria bom que todos os espectadores ajudassem o CAL e a organização pagando a sua entrada, para que a prova seja sustentável cá no Norte. Mas, infelizmente, nem a questão cultural se alterou nem a situação económica geral “dá a mão” pelo que, os homens do CAL, vão ter de “fazer pela vida” na “caça aos borlistas”, a começar desde já…

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