Afinal, o que conta? A roupa ou a etiqueta?

Quando no fim da segunda guerra mundial o exército americano localizou a coleção de arte pertencente a Goering, o número 2 de Hitler, “surripiada” dos melhores museus da Europa, foi encontrado o óleo “Cristo e a mulher adúltera”, assinado por Jan Vermeer, pintor holandês do séc. XVII considerado um herói nacional a par de Rembrandt, o que não passava de mais um entre os muitos quadros de pintores célebres “adquiridos” pelo chefe nazi. Mas um especialista holandês destacado para trabalhar no caso viria a descobrir um recibo referente ao quadro com a nota de “pago”, prova de que não havia sido roubado como os outros mas sim vendido por alguém, num ato de traição à pátria, provocando um coro de protestos da Holanda ao resto da Europa.

As autoridades holandesas começaram a investigação a partir do indivíduo que o vendera até chegarem a um tal Van Meegeren, artista de Amesterdão dono de grande património, que prenderam de imediato. Ao fim de três semanas de prisão, privado de bebidas e pílulas para dormir a que estava habituado, entrou em histeria, soltaram-no mas prenderam-no novamente, acabando por claudicar e confessar: “Eu não vendi aos alemães nenhum tesouro nacional. O que lhes entreguei foi um quadro pintado por mim, como se tratasse de um Vermeer”. Confessou que tinha pintado não um, mas seis quadros como se fossem originais do grande mestre e alguns até já faziam parte do espólio de museus nacionais. A polícia ficou desorientada porque ia à procura de um traidor e ele dizia-se falsário. Os especialistas que haviam certificados os quadros negavam que fossem falsificações até porque a sua reputação, o seu ganha-pão, estava em causa, e a polémica instalou-se. Aqueles quadros que estavam expostos em museus seriam da autoria de Vermeer duzentos e cinquenta anos atrás ou pintados agora por Van Meegeren?

Este afirmava que tinha pintado os quadros para se vingar dos críticos e dos especialistas que nunca valorizaram o seu trabalho como artista, com críticas negativas e injustas. E, cansado de ser injustiçado, resolveu ridicularizá-los. Para isso estudou profundamente as obras de Vermeer em todos os detalhes, desde os materiais às técnicas de pintura, não deixando nenhum pormenor de fora, como os pinceis em pelo de texugo em lugar de cerdas de porco.

Um polícia subalterno sugeriu então que se permitisse ao acusado pintar um novo quadro, sendo tal aceite pelas partes, o que os jornais noticiaram: “Um artista que pinta para salvar a pele”. Fecharam-no num estúdio com todo o tipo de materiais que requisitou, com polícias a vigiá-lo. E ao longo de meses foi dando forma a uma nova obra intitulada “O Menino Jesus no Templo entre os Doutores” que se integrava nos temas do mestre pintor. Quando foi dada por concluída, a polícia requereu os serviços de uma equipa de especialistas para certificarem se a nova pintura podia passar por ser da autoria de Vermeer ou se a falsificação era detetável mas, ao fim de alguns meses, não chegaram a conclusões. Contrataram então um júri internacional mas o resultado foi o mesmo, mantendo-se a polémica e a perplexidade. Acreditava-se que o júri seria obrigado a reconhecer que os quadros eram imitações muito bem feitas difíceis de verificar se eram de Vermeer ou não o que, a verificar-se, traria uma pena mais dura para o falsificador. Mas Van Meegeren preferia a condenação mais grave, pois assim vingaria a sua honra e derrubaria o orgulho dos críticos de arte, o que veio a acontecer ao fim de mais de dois anos, tendo sido condenado a um ano de prisão que nunca foi consumada até à sua morte. De tudo o que se escreveu sobre o caso, registem-se as palavras de Jean Decoen acerca dos críticos de Van Meegeren: “Uma coisa fica deste mistério. É a atitude dos que anunciaram ao mundo a descoberta de uma das maiores obras primas da arte holandesa. Então, as características que esta obra possuía deixaram de existir? As qualidades que dão vida a uma obra prima só existem na mente dos homens, sem fundamento real? Será que tudo se evapora e só conta o nome do artista? Assim, é o Nome e não a obra que encerra aquela simpática magia… O maior falsificador de todos os tempos criou no século XX uma das maiores obras primas da arte holandesa do século XVII… Tiro-lhe o meu chapéu”.

Esta história real, muito mais rica mas que tive de resumir como se compreende, leva-nos à eterna questão: Afinal, o que conta? A roupa ou a etiqueta? A “roupa” é apreciada porque é boa ou porque é de uma determinada marca? E entenda-se por “roupa” todo o tipo de bens de consumo, do calçado aos acessórios, das malas à roupa, para além de arte e tantas outras coisas. Hoje, mais do que no final da segunda guerra mundial, paga-se pela etiqueta, pela assinatura, como se o preço alto fosse sinónimo e garantia de qualidade alta.

Para além disso, estamos tantas vezes “condicionados” à opinião e parecer de ditos “especialistas” fazedores de opinião, que nem nos apercebemos que nem sempre são dignos de credibilidade.

Quem compra, compra para o outro, mesmo sem ter consciência disso. O consumo de um certo bem, de uma certa referência, é a forma de se inserir num determinado meio. As marcas, as etiquetas, as assinaturas, são símbolos a que se associam estilos de vida, classes e estatutos. Para alcançá-los, julga-se que o bilhete de entrada é comprar esses símbolos. Só que, muitas vezes, esse “bilhete” é falso…

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