Ripagem, a indústria esquecida…

Para a maioria dos jovens, falar em ripagem ou em “folhelho” será como falar chinês. No entanto poderão perceber do que se trata se disser que nos anos 50 a grande maioria dos colchões de cama eram cheios com o tal “folhelho”.

Na agricultura tradicional o milho era cultivado para a produção de grão até porque a renda dos “caseiros” era paga em “carros de milho” efetivo, o que hoje normalmente é transformado em dinheiro. Após a colheita, as espigas eram amontoadas no meio da eira para a tradicional desfolhada, onde se reuniam familiares, vizinhos e amigos para as “desfolharem”, isto é, separarem a “camisa” da espiga.

A “desfolhada” era um serviço comunitário, uma ajuda a quem precisava sem qualquer retribuição monetária e durante a qual o lavrador ia servindo broa e aguardente ou vinho, ou algo mais, conforme os casos. Fui a muitas e era sempre motivo de festa, de cantigas e bailarico, onde se começavam namoros à procura do “milho rei”, motivo para um beijo ou um abraço. E o lavrador ficava com o serviço feito, as espigas para um lado e as “camisas” ou “folhelho” para o outro.

Algum desse “folhelho era utilizado para consumo do gado mas a maior parte vendia-se a negociantes, quase sempre antes da colheita.

Umas escassas dezenas de metros abaixo da casa dos meus pais, mesmo ao lado da oficina do espingardeiro, a Miquinhas Mota tinha o seu negócio de folhelho, sendo a principal compradora da região. No entanto, para ser utilizado no enchimento dos colchões o folhelho precisava de ser “ripado”, para o que ela contava com uma legião de mulheres operárias que lhe prestavam esse serviço em suas casas, uma indústria sem “fábrica” nem empregados, apenas de simples prestadoras de serviço.

Cada mulher ”operária” levava para casa, à cabeça, um enorme molho de “folhelho” em bruto metido num saco de rede, de pouco peso mas grande volume, para ser “ripado”. O “ripo” era uma tábua com seis ou oito pregos compridos, ao alto, firmes e bem afiados, fixado numa bancada por forma a poderem trabalhar em pé, sendo nele que se fazia a “ripagem” que mais não era que desfiar as camisas do milho fazendo-as passar entre os “dentes” do ripo, num processo que exigia ritmo e força.

Entre muitas outras, relembro a Sofia do “Macarrão” a fazer o molho de “camisas” que as suas mãos conseguiam agarrar, espetá-lo no ripo e puxar com uma cadência quase mecânica, retirando os talos dos pés das camisas até estas estarem desfiadas em tiras muito finas, enquanto o pó que se ia soltando lhe empoava a roupa, a cara e o cabelo. Era um trabalho cansativo e sujo, feito nos intervalos da lide de casa.

Quando o molho estava ripado, era entregue em casa da Miquinhas Mota, com direito a uma retribuição monetária que, embora pequena, era muito valiosa para ajudar ao sustento da família.

A quase totalidade do folhelho tinha como destino o Porto, pois era lá que estavam localizadas as empresas que fabricavam e enchiam os colchões. Para mais facilidade de transporte, o volume era reduzido antes de ser enviado, ao ser enfardado numa prensa simples e amarrado com arames.

Os colchões de folhelho serviram milhões de pessoas como lugar de repouso, arena para amar e gerar filhos, espaço para viver e para morrer, cofre improvisado para esconderijo do dinheiro das poupanças, local de sonhos, de amores e desamores.

A “ripagem” foi a primeira indústria que conheci, que vi a funcionar durante muitos anos e que viria a ser aniquilada com a invenção de produtos sintéticos e outros para o fabrico de colchões, deixando o folhelho de ser a matéria prima para o efeito. E se hoje ainda há desfolhadas, já só existem para um manter da tradição de quem quer preservar (e ainda bem) um património cultural quase perdido ou para turista ver.

Mas as “ripadeiras” e a “ripagem” passaram à história ou deixaram de fazer parte dela, safadas pela grande borracha do tempo e extintas como tantos milhares de espécies através dos séculos, sem que delas tivesse ficado qualquer registo conhecido, qualquer memória para os vindouros. Também a Miquinhas Mota, partiu para onde não há colchões de folhelho e com ela se foi a indústria que ajudou a sustentar muitas famílias de Macieira ao longo de anos.

Ainda guardo um “ripo” para me relembrar desses tempos e da vida difícil que tinham as “ripadeiras”, mulheres com rosto e nome como a Sofia mas que, enquanto trabalhavam, tinham sempre um canto alegre e um sorriso nos lábios, de quem dá graças a Deus por viver e ter trabalho, por muito pouco, muito duro e muito mal pago que fosse. E se era…

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