A irreverência e a sabedoria

Já fui jovem e em determinada altura pensava que sabia tudo, muito mais que aqueles “velhos professores” que “pararam no tempo”. Mas, felizmente, essa “febre” passou-me depressa.

Quando fui estudar para Coimbra cedo me convenci que, ou “fazia pela vida” ou “o caldo estava entornado” e eu não me podia dar ao luxo de ir para lá fingir que estudava. Daí que me agarrei ao “verbo” logo no primeiro ano, o que me veio garantir uma bolsa de estudo para o resto do curso, contributo importante para alcançar o meu objetivo. Felizmente.

Entre nós, jovens provenientes de todo o país, havia de tudo, desde os mais ingénuos aos muito vividos, dos pacatos aos traquinas, dos estudiosos aos grandes “calaceiros”. E, como em todas as escolas, também existiam os “profissionais” das cábulas e dos copianços.

Havia um professor que, depois de distribuir os testes pelas carteiras, sentava-se na secretária a ler o jornal e dali só saía quando soava o toque da campainha. Visto de frente, mais parecia que só lá estava a secretária e um jornal aberto porque, dele, nem sinal. Que “bestial” para a malta do copianço puxar dos “auxiliares de memória”… Só que, de vez em quando, ouvia-se a voz do mestre por detrás do jornal: “João, arruma as coisas e põe-te na rua”. E continuava a ler, sem se dignar mostrar a cabeça sequer…

A malta que usava as cábulas “arrepiava caminho” mas, como ele continuava sem dar sinal de vida, voltavam a puxar por elas. E pouco depois ouvia-se mais uma vez algo como “Daniel, arruma as coisas e põe-te na rua”.

De teste para teste o filme repetia-se até ao dia em que alguém descobriu o porquê dessa “capacidade excepcional” do professor: Ele fazia recortes nas páginas do jornal ajustados à dimensão das letras maiores ou às imagens para não serem detetados, por onde espiava toda a sala. E apanhava os “espertos”…

Tive muitos professores e cada um com a sua maneira de ser e de ensinar. Curiosamente, aquele que mais me marcou tanto em termos escolares como para a vida foi o Dr. Abílio, no Colégio Eça de Queirós. Meu professor de matemática e físico-química, incutiu-me o gosto por tais disciplinas, muito especialmente pela matemática, educando-me a exercitar a mente. De espírito vivo, inteligência rara e excelente cultura geral, tinha grande rapidez de raciocínio e resposta rápida. De tal forma que, um dia, ao entrar no posto dos correios de Lousada a senhora do balcão, com alguma confiança pessoal, cumprimentou-o assim: “Como está o Doutor da Mula Ruça”. E a resposta foi instantânea: “Não precisavas de dizer que és minha doente…”

Nisto de reações rápidas, decorria na Escola de Coimbra uma aula com toda a normalidade quando um dos alunos sentado nas carteiras da frente “largou” um estrondoso e sonoro “traque”, deixando a malta a rir. Lá no fundo, o Paulo que era irreverente e reativo, levantou-se, saltou para cima da carteira e com um gesto dramático, anunciou: “E soa a trombeta castelhana…”

O professor, homem magro e de estatura baixa, como que disparado por uma mola e em jeito de copianço do Paulo, pôs-se em pé em cima da cadeira, estendeu o braço e, com voz imperial, retorquiu: “Então ponha-se imediatamente lá fora para ver se os espanhóis estão a chegar…”

Sempre se confrontaram as partes, estando de um lado a jovialidade, a irrequietude e a irreverência dos alunos e, do outro, a sabedoria, a experiência e a tranquilidade dos professores, nesse processo complexo e muito importante que é a educação. Noutros tempos existia muito mais respeito de alunos para com professores do que agora, incomparavelmente, mas não quer dizer que não tentassem fazer-lhes alguma malandrice. E essa vontade de o pôr em causa mantem-se através dos tempos.

Numa universidade brasileira os alunos de uma turma resolveram divertir-se à custa de um professor. Arranjaram um burro, fecharam-no na sala onde seria dada a aula e esconderam-se perto da porta de entrada para gozarem com a previsível reação do mestre. Este chegou de pasta na mão, abriu a porta, entrou e fechou-a atrás de si. E os alunos ficaram na espectativa.

O tempo foi passando sem que o professor desse acordo de si, até que o sinal sonoro assinalou a hora de saída. Então viram a porta abrir-se e ele a sair descontraidamente de pasta na mão, como se nada de anormal se tivesse passado. A frustração foi geral, porque não deu oportunidade à esperada gozação.

O professor deu a aula seguinte com toda a naturalidade, sem fazer qualquer alusão ao ocorrido, como se não tivesse apercebido de nada mas, um pouco antes de acabar e quando já todos arrumavam as coisas para saírem, pediu aos alunos um momento de atenção e disse-lhes: “Amanhã haverá teste. A matéria é a que foi dada na última aula. Se tiverem dúvidas, perguntem ao vosso único colega que esteve cá”.

Ao outro dia houve teste e, claro, tiveram todos zero…

O povo, na sua sabedoria, resume tudo isto numa simples frase: “Ir buscar lã e sair tosqueado”.

Já Bernard Baruch diz que, “em cada profissão é preciso uma dose de sabedoria para se perceber, a cada mudança, a extensão da própria ignorância”.

 

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