Estava instalado no sofá quando vi na televisão uma reportagem sobre o Tattoo & Rock Festival, onde ia estar “pessoal da pesada” vindo de todo o mundo. Deu-me cá um “clique” e pensei: “Está na hora de mudar o visual. Tenho de ir já ao Meo Arena fazer umas tatuagens “à maneira”. E lá fui eu…
Num festival de tatuagens, piercings, rock, skate, indumentária alternativa e de todo um estilo de vida associado aos que escapam ao convencional, tinha que optar sobre as partes do corpo a tatuar e o quê. Decisão difícil, depois de ver catálogos, fotos e todo o tipo de imagens. Nenhuma me convenceu pelo que tive de criar os meus originais, tendo em conta que a intenção era homenagear gente que “marcou” o país de forma inequívoca.
Comecei pela cabeça. Concebi para ela uma imagem de uma sanita a ocupar todo o pescoço, tendo a base assente nos ombros e o tampo a ficar justo ao queixo e à nuca. Da “sanita” emerge a cabeça onde, na parte superior, depois de rapados os poucos pelos que me restam, mandei tatuar uma cabeleira bem penteada do tipo “Executivo”, que me fez desaparecer a careca… Para o rosto decidi que me pintassem uns grandes óculos escuros que me engolissem a cara. Claro que pedi óculos graduados para arrumar as “cangalhas” que trago no bolso… Com esta tatuagem pretendo homenagear os empresários e gestores de “sucesso” como os do grupo BES, do BPM, do BPP, da PT, do Banco de Portugal e outros que tais, que fizeram muita m… “massa”, dando um forte contributo para porem o país no estado em que está. A sanita é o local adequado para os enfiar de cabeça para baixo, dela emergindo a cabeça de um para tomar ar, de óculos escuros para não ser reconhecido. Bem hajam…
Para o peito não resisti à tentação de mandar tatuar os peitorais de um concorrente da Casa dos Segredos ou do Big Brother, daqueles que provocam inveja. Como parte dos músculos do peito me descaíram para a barriga formando o “pneu”, fizeram um bom trabalho ao tatuarem-me um avental inspirado nos concorrentes da Chefs Academy (continuo sem perceber porque é que não se chama Academia de Chefes. Ou em português é para parolos como eu?), dando a entender que a saliência que tenho ao nível da cintura é uma regueifa de pão de ló que trago no bolso. Rapazes inteligentes…
Nas costas, em manifestação de solidariedade com a grande maioria dos políticos portugueses dos últimos quarenta anos, que correm sérios riscos de morrer de cansaço de tanto nos prometerem, uma grande cara. Na parte superior, os olhos esbugalhados e os cabelos desgrenhados tatuado pelos meus ombros fora. Para baixo, o tatuador aproveitou bem aquelas duas partes arredondadas que tenho ao fundo das costas para desenhar duas grandes bochechas (que não devem ser confundidas com nenhum político em especial), com a boca muito aberta, próprio de quem está a “falar” entusiasmado ao povo, tão aberta que parece “ao alto”. É por ali que sai tudo o que cheira mal… Eles merecem tudo…
Nas pernas pedi para copiarem as da Rosa Mota, numa manifestação de respeito pelos grandes maratonistas portugueses e solidário com todos aqueles que têm de “correr”… para fora do país.
Bom, na frente, naquele lugar que outrora foi pudico mas que há muito perdeu tal classificação, deixo que cada um imagine um desenho enquanto conto a história de uma tatuagem. Vamos a ela.
Durante a guerra um ferido entrou no hospital inconsciente, tendo sido assistido por duas enfermeiras. Depois de o tratarem, ficaram à conversa. “Viste como é que um homem tão forte tem uma “coisa” tão pequenina?” dizia uma a rir. “Claro que sim”, respondeu a outra “e até reparei que tem uma tatuagem na “coisita” a dizer “ÓNIO”, acrescentou em tom galhofeiro.
Dias depois separaram-se e só se voltaram a encontrar vinte anos mais tarde. Conversaram e recordaram momentos vividos em comum até que uma perguntou: “Tens filhos?” “Oito”, respondeu-lhe de imediato. “Oito???!!! Como é possível? Quem é o herói com quem casaste?” volveu ela. “Lembras-te daquele soldado ferido sobre o qual nos fartamos de brincar por ter uma coisa escrita naquela parte do corpo? Foi com esse” respondeu-lhe ela.
“Não acredito, pois ele tinha uma “coisa” tão pequenina”… “Pois foi com esse. É que nós só vimos o fim porque a tatuagem completa diz: “NASCIDO EM 20-10-1921 EM VILA REAL DE SANTO ANTÓNIO”.
Cheguei à adolescência numa sociedade sem tatuagens e foi no interior de África que vi em povos primitivos pinturas e vários tipos de objetos enfiados no corpo. Pensei que, nós, civilização ocidental, já tínhamos passado esse estado de primitivismo de que tais “decorações” eram um sinal.
Cinco décadas depois vejo que estava enganado. Pouco a pouco, as tatuagens, piercings e outros “violações” do corpo foram surgindo, multiplicando-se, sendo já vulgares nos nossos conhecidos, amigos e até família. Não o faria mas respeito inteiramente quem o faça. É uma opção.
Mas, pensando que as “pinturas” e todo o tipo de “piercings” eram um sinal do primitivismo de uma civilização, fossem eles ossos, paus, caricas ou outros materiais enfiados no nariz, no lábio, na orelha ou em qualquer parte do corpo, às vezes dou comigo a pensar que devemos estar a chegar ao fim de uma civilização, a convencional, que vai desaparecendo, e já nos encontramos em transição para outra, talvez radical, que ainda se encontra no seu estado “primitivo” se considerarmos o mesmo tipo de sinais.
Se for assim, só há uma “pequena” diferença entre uns e outros. É que, os de hoje, nascem num estado mais avançado, mais sofisticado. Talvez por terem herdado “excesso de tinta”…