A viagem da memória… e o desejo

Numa daquelas noites em que não conseguia entregar-me nos braços de Morfeu, dei comigo numa viagem de regresso à infância através de uma memória desgastada por sete décadas de labor contínuo.

E vi-me na escola de Macieira à cotovelada ao Arnaldo meu companheiro de carteira. Lembrei-me do dia em que eu e vários colegas sacudíamos o cabelo com a mão fazendo cair em cima do tampo da carteira a praga de piolhos que apanhamos ao pegar num saco de serapilheira deixado pelos ciganos num dos acampamentos temporários, quando vinham à procura de porcos ou galinhas mortos por uma qualquer doença e enterrados à menos de três dias, aproveitando-nos para comer.

Nos intervalos jogávamos ao “pica” com os botões surripiados em casa ou arrancados da roupa, ou ao peão para ver quem dava mais “bicadas” nos outros. Eu tinha um feito no torno do senhor Alberto espingardeiro com ponteira aguçada, em aço, e conseguia rachar os outros se lhes acertasse em cheio, ao “lança-lo”. No final das aulas íamos aos ninhos ou à fruta, conforme a época do ano, o que nos obrigava a ter um conhecimento perfeito dos recantos da aldeia para descobrir uns e outros, os ninhos para observar e a fruta para colher (se o dono não visse).

Quase toda a gente andava descalça, de roupa remendada e com pouco que vestir. Eu tinha o privilégio de andar de botas, com sola de um pneu velho que o meu pai arranjara, feitas à mão pelo senhor Pereira da Coutada, o sapateiro da terra, o que não me impedia de apanhar caneladas dos que andavam descalços ao jogar com uma bola feita de trapos e uma meia velha que a minha mãe me dera, no caminho esburacado de Recemonde.

As mulheres lavavam a roupa na “presa” do campo, e cantavam, iam sachar o milho aos lavradores, e cantavam, participavam no trabalho das desfolhadas, sempre a cantar, e faziam muitas outras coisas, a cantar.

Era na mercearia do tio Peixoto que eu via os pedreiros a “matarem o bicho” pela manhã, com um naco de broa e um copo de aguardente, antes de irem a pé para o trabalho, tantas vezes a quilómetros de distância, e onde tinham de estar ao nascer do sol. Sim, porque se trabalhava de “sol a sol”, isto é, do nascer ao pôr do sol.

Na Páscoa, quando as casas levavam uma “barrela”, uma limpeza geral para receber o Senhor, davam-nos uma “pitinha” de pão ou uma regueifa que, enfiada no braço, era motivo para exibição durante todo o dia, como se de ouro se tratasse.

Nesse tempo, Espanha era um país muito distante e se alguém ia para o Brasil, como o Zé, da tia Quina, a despedida era para sempre. Certo é que, a ele, nunca mais o vi.

E estaria aqui ao longo de páginas e páginas a relatar essas memórias dum tempo em que havia tão pouco que, quando conto aos meus filhos, não acreditam, mas onde se sentia a alegria de viver, a solidariedade de quem divide o pouco que tem, a boa vizinhança como proteção, a liberdade em segurança das crianças, o valor do pouco e do simples, o espírito comunitário expresso nos trabalhos coletivos da agricultura – as sachas do milho, as desfolhadas, as vindimas ou as espadeladas, as portas abertas de quem dorme tranquilo e confiante.

Regresso dessa viagem ao passado e vejo-me num presente com ganhos materiais inimagináveis para qualquer miúdo de então. Diria mesmo que a minha geração assistiu a uma transformação profunda da sociedade e a uma evolução tecnológica tão grande, como nenhuma outra viu ou verá. Mas, em contrapartida, há “bens” preciosos que se foram perdendo ao longo da viagem, valores que o dinheiro não consegue comprar…

Hoje temos mais meios materiais, muito mais bens e equipamentos, a maioria deles que nem o próprio Júlio Verne conseguiu prever. O acesso à educação massificou-se, temos um sistema de saúde que, não sendo perfeito, é para todos e relativamente acessível. O parque habitacional não tem comparação e tudo ao nível dos bens materiais mudou para melhor, muito melhor. Se os meus avós me viessem “visitar” e fossem a um qualquer supermercado, ficariam mudos de espanto…

Como a maioria, sou comodista, dado ao consumismo. E até corri atrás da felicidade como se ela estivesse no ter os eletrodomésticos mais sofisticados, nas aparelhagens de som e de imagem ou em equipamentos de comunicação, cada vez mais inovadores, cada vez mais avançados, cada dia mais apelativos, sem me aperceber que são sempre feitos para consumirmos, consumirmos, consumirmos. Ainda que depois fiquem esquecidos num canto da casa, aumentando à tralha inútil como lixo que são.

Mas, sem todos os comodismos de hoje, sem as carradas de bens de consumo que temos à nossa disposição muitos dos quais nem sabemos bem para que servem, sem os meios de comunicação e de transporte que nos fazem encurtar espaços e tempos, gostaria de regressar atrás, não para voltar a ser criança mas para poder reencontrar o espírito da comunidade rural em que vivi, com todos os seus hábitos, tradições, regras e valores, algo que, quem viveu, nunca esquecerá…

E fico dividido entre o comodismo e a emoção.

    

Leave a Reply