Existem dois tipos de pessoas: As que passam na nossa vida e as que fazem parte da nossa vida. A minha avó materna não só fez parte da minha como nela deixou algumas pinceladas que contribuíram para a formação da minha personalidade e do meu carácter.
Todos os dias ao encontra-la pela manhã, dizia-lhe em tom respeitoso “vote-me a sua bênção, mãezinha” (ela não gostava que lhe chamasse avó). E ela respondia-me com um “Deus te abençoe”.
Não cheguei a conhecer o meu avô. Tendo ficado viúva, assumiu o negócio das feiras com uma tenda de tecidos. Ainda me lembro de a ver chegar na carroça, desaparelhar o cavalo e guardar tudo numa loja no rés do chão da casa. Anos mais tarde, uma carrinha substituiria a velha carroça e o cavalo, acompanhando a evolução dos tendeiros de então e dos tempos. A última viatura que teve foi um grande automóvel Chevrolet que carregava até ao teto e que muitas vezes conduzi durante as férias, para a levar às feiras de Amarante, de Felgueiras e de Fafe. A cada curva mais apertada dizia-me: “Aqui esbarrou-se o António da Laje” e mais adiante “nesta curva morreu o Manuel da Quinta”, num alerta constante e permanente ao longo de toda a viagem, para ter cuidado na condução.
A sua casa ficava mesmo em frente à dos meus pais, pelo que ali passei muito tempo da infância com os meus irmãos. E ela gostava de nos ver por lá.
No tempo da fruta, no tempo em que a fruta tinha um tempo, aquela figueira grande que estava ao canto do quintal dava-me carradas de prazer e barrigadas de figos como nunca mais tive. Também relembro uma ameixieira de “aparta caroço” (caranguejeira) cujos ramos caíam sobre a mata por detrás da casa. As ameixas nunca chegavam a amadurecer…
Durante muito tempo cultivou um campo dos meus pais com a ajuda do Tónio, um empregado que foi para mim um amigo e companheiro inesquecível. Como gostava muito de melão, todos os anos semeava um grande meloal “casca de carvalho”, tendo-me transmitido o gosto por esse fruto. E foram tantos os que comi em pleno meloal ou em casa, doces e apimentados, daqueles que hoje se procuram mas raramente se encontram…
Aprendi a semear melões fazendo uma cova estreita e funda que se enchia com estrume bem curtido, cobria com um pouco de terra sobre a qual se depositavam 4 ou 5 pevides, a “capá-los”, a protegê-los com as folhas nos dias de muito calor e a escolhê-los pelo “toque”. Só não consegui dormir uma noite na barraca de madeira onde o Tónio ficava de vigia, a guardar o meloal, porque a minha mãe não deixou.
Ficaram-me muitas e boas recordações dos momentos que vivi em sua casa. Mas, especiais, eram as noites de Natal ao redor da lareira, sentado no “preguiceiro” em frente do forno a jogar ao “rapa” a pinhões com os meus irmãos ou a comer a ceia na mesa da sala em noite de consoada. E os dias de Páscoa em que nós, netos, andávamos por ali como pardais à solta, à espera que chegasse o padeiro com as “roscas de pão de ló”. Era um presente invulgar a “rosca” de meio quilo que ela oferecia a cada um de nós. E comíamos tudo até à última migalha ao longo dos dias seguintes, para que o prazer “rendesse”, sem que o papel envolvente escapasse a uma boa raspadela até ficar limpinho. Nunca mais comi pão de ló que me soubesse tão bem…
Trabalhou até aos noventa anos, sem nunca perder o espírito de comerciante.
Mesmo depois de deixar as feiras, e já com idade avançada, ia pela aldeia abaixo com uma carreta, vendendo aqui umas maçãs, comprando ali uma galinha que vendia logo mais abaixo, mantendo vivo o seu espírito comercial. O meu pai, já muito doente, não queria que ela continuasse a trabalhar, acabando por fazer com que saísse de casa às escondidas para ele não ver. Mas essa era isso que a mantinha “viva”.
Teve três filhos e viu-os partir muito antes de si (e a alguns netos), contrariando o que deveria ser uma lei da natureza.
Era uma mulher rija, muito resistente e trabalhadora, de uma força interior notável, casmurra quanto baste, mas de grande coração. Vejo-a sempre vestida de preto e de lenço na cabeça, com as saias compridas, muito compridas, assumindo até ao fim o luto pelo marido. E nas feiras, chamando os clientes para verem a mercadoria ou marralhando os preços com grande instinto comercial e um à vontade próprio de quem está como “peixe na água”.
O dinheiro do negócio guardava-o numa grande algibeira metida no meio das várias saias que usava sempre, resguardado da tentação alheia pois nessa época já havia ladrões, amadores e em pequena quantidade, se comparados aos “profissionais” que hoje temos para aí aos montes…
Passou dos noventa anos, décadas depois dos seus filhos partirem, recolhida tranquilamente na sua casa, no seu canto. Foi e é parte da minha vida e ao recordá-la, sinto nostalgia, uma grande saudade das suas resmunguices e dos seus mimos de avó.
Por isso, hoje como ontem, lhe digo: VOTE-ME A SUA BENÇÃO, MÃEZINHA.