Heróis do meu dia a dia. Como se transforma uma cruz numa benção…

 

Nasci e cresci numa sociedade assente em valores morais como a bondade, a honestidade, a honra, o respeito, a palavra, a gentileza, a generosidade e outros, que davam muitas vezes sentido e significado à vida. Até porque, o verdadeiro significado da vida é compreender e perceber que não é feliz quem mais tem, mas quem mais se satisfaz com o que tem. Mas, com o passar dos anos, assisti às mudanças de objetivo, ao materialismo e consumismo desenfreado como fim em si. Com a perda das referências e desses valores, entramos numa estúpida corrida para bater recordes de acumulação de riqueza, medindo-se o êxito pelo tamanho da casa, do carro e da inveja que se suscita, pela fama que se alcança como empresários, atores, futebolistas ou cantores, convencidos que basta acreditar para se ser rico e famoso. No entanto, para a maioria, só sobra a frustração. E os bem sucedidos? Até podem ter tudo, mas tantas vezes encontram um vazio, porque lhes falta o significado.

Encontrar o significado para a vida, aquilo que realmente importa, é só para alguns, que às vezes têm de passar pelo sofrimento para compreenderem e fazerem essa descoberta dentro de si mesmos. Para lá chegar, é preciso ter consciência da nossa mortalidade, que se torna clara normalmente com a maturidade, embora há quem lá tenha chegado antes. É o caso de Marisa.

Engravidou no primeiro ano de casada, quando o casal trabalhava e vivia com os sonhos próprios dos jovens. Mas, quando soube que tinha três crianças dentro de si, chorou sem parar como se o mundo lhe caísse em cima. Porque não esperava tanta gente de uma “assentada”. E, após parto prematuro, muito mais chorou quando os médicos diagnosticaram paralisia cerebral a uma das bebés e a informaram de que poderia não chegar a andar, a falar, a respirar, enfim, a viver. Recusou-se a acreditar até porque Susi foi a primeira a recuperar do parto. Para evitar a exposição “à pena”, manteve o prognóstico fechado no círculo familiar.

Deixou o emprego que tinha e assumiu o de Mãe a tempo inteiro, para cuidar dos filhos, em especial da Susi, tendo-se comprometido consigo mesma em fazer tudo, mas mesmo tudo, para que a sua filha pudesse um dia andar, ser independente, e não tenha de sentir o estigma do “Deficiente”, nas palavras, nos olhos e nos gestos das pessoas.

Com o marido a assegurar o rendimento familiar, muito curto para tantos encargos, a sua vida tornou-se num rodopio entre consultas médicas e tratamentos diversos, indo a tudo o que lhe pudesse alimentar a esperança. Contrariando a previsão de alguns clínicos, a Susi foi equilibrando o corpo, começou a gatinhar, apresentou melhorias significativas. Como a posição dos pés, em pontas, a impedia de andar, foi sugerida uma cirurgia no México aos três anos de idade. Mas era preciso dinheiro, milhares de euros que não tinha. Contra o parecer de clínicos (mas com o apoio da sua médica de família) e a total solidariedade económica e emocional da família, o casal lá foi com a menina, tendo a operação sido um sucesso ao ponto dela começar a andar apoiada nas paredes, pouco tempo depois.

Seguiu-se nova onda de consultas e tratamentos de recuperação, diários, que lhe absorviam o tempo e as economias de que não dispunha, sendo sempre a família o seu amparo.

E a Susi deu alguns passos sem apoio e foi melhorando, até que um cirurgião russo lhe recomendou nova cirurgia em Madrid, aos seis anos, renovando a esperança. Mas eram necessários novos milhares de euros, que continuava a não ter. Criou uma rifa para fazer algum dinheiro e, pelo meio, uma amiga desencadeou uma angariação de fundos local, que viria a ter vários apoios incluindo o do pároco da freguesia, contra a vontade e princípios seus e dos pais, mas em nome do futuro da filha.

E foi com fundos obtidos da solidariedade popular que se realizou a cirurgia, com sucesso. Mas, para tirar o máximo partido dela, tem de seguir-se uma recuperação longa, difícil e… dispendiosa. Mais uma vez. E vem aí também a entrada na escola, com a Susi a ter de superar novas dificuldades, incompreensões e… a discriminação. Mesmo de quem não devia…

Apesar de todas as dificuldades, encontrou a felicidade no rés do chão da casa dos pais onde vive, no amor do marido, filhos e família. Descobriu como existem riquezas imensas no coração das pessoas, a começar nos que lhe são próximos, no apoio incondicional dos pais, irmãos e outros familiares, numa dimensão que não imaginava. Descobriu nos outros, gente simples e anónima, a generosidade, a solidariedade e o amor, dizendo-se espantada e surpreendida com o muito de bom que há nas pessoas, na sociedade que a rodeia, um valor de que não se apercebera até então.

E cresceu como pessoa e mulher, numa maturidade forçada pelo sofrimento e pelas dificuldades, tomando consciência do que é verdadeiramente importante nesta vida, do que tem significado. Tornou-se uma lutadora, vivendo um dia de cada vez, sustentada no amor dos seus, na solidariedade anónima, na força ganha na marcha que organiza, em cada pessoa que compreende e se lhe dá, porque também já passou por algo difícil. É que as pessoas aproximam-se mais na dor do que na alegria.

Só recorreu a ajudas institucionais quando entendeu não poder sacrificar mais a família e não se queixa do muito ou pouco que recebeu até porque, diz, “como é que o Estado me pode ajudar se ele precisa tanto de quem o ajude?”.

Seguiu em frente contra o cepticismo de médicos e a incompreensão de quem devia compreender. Sentiu discriminação pela filha em palavras e atos de (ir)responsáveis que a fizeram chorar muito, sofreu com insinuações maldosas de gente mesquinha que gostaria de a ver sem dignidade, qual maltrapilho, mas só tem palavras de agradecimento para todos, e foram muitos, que lhe deram a mão, a ajudaram e estimularam a lutar pela Susi.

Queixa-se da vida? Não, nem pensar. Pensa até que toda a gente devia passar por uma provação como a sua, para crescer e encontrar um objetivo digno para viver.  

Daquilo que para a maioria das pessoas seria uma cruz, ela fez a sua redenção, a sua bênção, o significado para a sua presença aqui. E diz, com um sorriso nos lábios: “Se Deus me deu de uma vez três filhos para tomar conta, tendo um deles problemas de saúde tão graves, por alguma razão foi. Porque ELE sabe o que faz.” E ela prova-o todos os dias, assumindo a condição de MÃE.

E pensava eu que nada mais me surpreendia, nem emocionava!!!…

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