Antes de te queixares, pensa no Serafim

Vi em criança como era difícil, muito difícil, o dia a dia das pessoas pois, para além de trabalharem “de sol a sol” (e era mesmo desde o nascer do sol até ele se pôr) e de terem de se deslocar de casa ao local de trabalho a pé, às vezes a quilómetros de distância, quase tudo exigia grande esforço.

Lembro-me do senhor Moura surribar uma mata para a transformar em quintal, cavando tudo a um metro de profundidade, com uma picareta e uma pá. Sozinho e à mão… Lembro-me de homens derreados sob o peso de sacos de adubo, de farinha e de outros produtos, com cem quilos cada. E havia quem o fizesse diariamente, descarregando ou carregando camiões e comboios, saco a saco, de cem quilos… Lembro-me das estradas serem abertas à “pá e pica”, usando a força dos braços…. Lembro-me dos pedreiros construírem as casas com pedras de granito, grandes e muito pesadas, à mão… e lembro-me das árvores serem serradas no monte, fazendo-se ali mesmo as vigas e as tábuas, usando a força humana. E nesse grande esforço físico, estavam sujeitos ao risco do tombar duma pedra, do rolar de um toro, de um deslize com um saco de cem quilos, não havendo proteção que lhes valesse, pelo que o risco profissional era elevado.

Com a invenção, desenvolvimento e multiplicação das máquinas esse esforço físico foi muito reduzido e reduzidos ou até eliminados foram muitos riscos profissionais em todos os sectores de atividade, da agricultura aos serviços e da indústria aos transportes. Mas, ainda continuam a existir profissões difíceis, onde há uma elevada possibilidade de se contraírem doenças graves e até incapacitantes, que todos os avanços tecnológicos de hoje ainda não resolveram.

Teoricamente, todas as profissões têm riscos, só que a graduação desse risco é muito diferente de umas para as outras. Certo é que, trabalhar todos os dias sob o risco de se adquirir uma doença grave, quando não, crónica, é algo em que não pensamos e que muito menos desejamos, uma realidade nalgumas profissões pouco tida em conta por quem não a sente.

É sabido que hoje, grande parte das doenças profissionais são muito mais resultantes de posturas de trabalho ou do ambiente em que se desenvolvem do que da exigência de esforço físico para a sua execução.

Serafim tem trinta e nove anos e é calceteiro desde rapaz. O pai era calceteiro e ele e os irmãos calceteiros se tornaram. Dias seguidos vi-o de passagem a assentar os cubos de um arruamento. Mas, como tantas vezes o fazemos, inconscientemente, passamos, olhamos mas não “vemos”. E foi assim que durante três dias olhei para o Serafim mas não o “vi”, apesar de o cumprimentar e de ele estar a trabalhar para nós.

Até que um dia parei, olhei e “vi-o” efetivamente. Estava na sua posição habitual de trabalho, ajoelhado no “pó de pico” que cobria o chão e debruçado para a frente, numa postura corporal difícil e violenta. Com o martelo na mão direita e o cubo na outra, trabalhava a uma cadência impressionante, como se de um autómato se tratasse. Batia com a “orelha” do martelo quatro ou cinco vezes no “pó de pico” para preparar a base de assentamento do cubo e, com a mão esquerda, colocava o cubo e dava-lhe cinco ou seis marteladas para o nivelar e ajustar, a uma cadência de cinquenta pancadas por minuto, três mil pancadas por hora e uma média de vinte e cinco a trinta mil pancadas por dia. Sempre naquela posição difícil. Uma loucura.

Depois de o observar a trabalhar, de o olhar e “ver” bem, conversei com ele. Parecendo-me pela posição de trabalho que as costas dele deveriam ser a parte do corpo mais sofrida, perguntei-lhe se ainda não tinha problemas. Já tinha, desde muito novo. Fora operado a uma hérnia discal aos vinte e três anos e, apesar do médico o aconselhar a procurar outra profissão, continuou na mesma anos a fio, porque “não sabe fazer outra coisa”. E ainda continua, apesar de ter agora várias hérnias lombares, para além de muitos outros problemas nas cervicais. E vai insistindo, sabendo que o seu fim como calceteiro está próximo, talvez no fim da próxima pavimentação…

Quando manifestei admiração por continuar a trabalhar apesar da gravidade dos seus males nas costas, disse-me, para minha surpresa: “Sabe, o nosso maior problema nem são as costas”. Ao dizer isto, parou de trabalhar, endireitou-se lentamente e levantou-se. Ao esticar as pernas, estas deram um “estalo” como uma caçadeira ao fechar-se. Até me arrepiei. “Vê, os joelhos é que são o nosso grande problema” disse ele. E para reforçar o que dizia, voltou a dobrar as pernas e a estica-las e o “estalo” ainda me pareceu maior, mais violento. “Deus meu, como é possível alguém aguentar isto”?

Sendo uma profissão com a certeza de se contraírem doenças graves e incapacitantes, até pensei que fosse bem paga. Puro engano. Serafim trabalha por sua conta e risco, ao metro, recebendo em função do que faz. Se chove ou faz muito frio, não trabalha nem ganha. Não tem direito a segurança social, ao décimo terceiro mês nem a subsídio de férias e tem de trabalhar duro, nove horas por dia, para conseguir um salário normal, bruto. Nos dias em que pode trabalhar. E enquanto puder trabalhar porque, aos trinta e nove anos, tem os dias contados como calceteiro, senão mesmo como trabalhador…

Pergunto-me quanto tempo aguentaria eu a fazer o que o Serafim faz, naquela posição. Um mês? Uma semana? Um dia? Ou uma hora?

E queixamo-nos nós, por tudo e por nada…

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