Comprei um frasco de “picles” para satisfazer um desejo, mas a verdade é que são duros e insípidos e não têm nada a ver com os pimentos curtidos em vinagre tinto caseiro que comia em casa dos meus pais, geralmente a acompanhar os rojões de porco, no tempo em que a carne de porco era rainha e senhora à mesa.
Os meus pais compravam sempre dois bácoros que criavam numa pequena corte na parte traseira da casa, alimentados com “batatas porqueiras” (as batatas miúdas que hoje custam três vezes mais que as outras) e a “lavagem”, os restos de couves e de todo o tipo de legumes na cozinha, deitados para um balde ao lado da banca (correspondente ao atual balde do lixo), a que se juntava farelo e água.
O porco era quase um subproduto, resultante do aproveitamento integral dos desperdícios da cozinha e da horta. Quando começavam a crescer, colocava-se-lhes um “arganel” no focinho para não “foçarem” nem fazerem estragos, algo que muitos dos políticos de hoje precisava que se lhes pusesse nas “beiças” para estarem calados, não dizerem tantas asneiras e para… “comerem” menos.
Toda a gente da aldeia criava o seu porquito, fazendo tudo para que fosse o maior e mais gordo possível, tamanho esse que era expresso em arrobas (quinze quilos). Porco bom, de fazer inveja aos vizinhos, tinha de pesar mais de dezasseis arrobas e de ter uma camada de gordura no lombo com a altura de “uma mão travessa”. É que o porco gordo, não só era mais saboroso como alimentava a gente magra de então, em contraponto com os dias de hoje, em que o porco tem de ser magro para alimentar gente gorda. Como as coisas mudam com o tempo…
O senhor Cunha era o matador, o homem que durante muitos anos foi a nossa casa “tratar da saúde” do bicho. Com a ajuda de uns vizinhos, deitava e amarrava o porco na “cabeceira” de um carro de bois, lavava-lhe a zona do golpe e espetava um facalhão no bicho. Apanhava-se o sangue num alguidar de barro vidrado, para ser usado no fabrico das chouriças e no sarrabulho. Eu gostava de ajudar a queimar o pelo com pequenos molhes de “palha centeia” a arder e de assistir à abertura da barriga por onde eram retiradas as tripas.
Ficava pendurado numa trave da loja até ao dia seguinte, em que o senhor Cunha voltava para a “desfazedura”, o dia mais ansiado pois tinha direito a uma febra que ia logo grelhar no ferro quente do fogão, antes da rejoada “à maneira”. Era um dia de grande azáfama, a desfazer o porco, fazer os rojões, preparar a salmoira para as chouriças e salpicões, guardar a maior parte da carne na salgadeira embrulhada em sal, etc., etc..
Naquele tempo quase ninguém comia carne de vaca, essa coisa rara, sem paladar… Nunca se viram “rojões de vaca”, “salpicões de vaca” nem “presunto de vaca” (se bem que há “vitelas” com excelentes “presuntos”, antes só imaginados e hoje muito bem expostos, mas que serão para outras “refeições”). Ainda hoje tenho saudades dos rojões bem entremeados de então.
Comi muita carne da “caluba”, a carne gorda com “três ou quatro dedos de altura”, em pequenas fatias sobre um naco de broa, coisa impensável nos dias de hoje. Aliás, essa era a carne usada para “adubar” o caldo, a única comida da maioria das gentes da aldeia.
Era com broa, azeitonas, vinho e salpicão caseiro, quando não com presunto, que se recebiam as visitas, na generosidade da gente simples, como se de um grande manjar se tratasse, porque era de facto um manjar.
As facilidades e o comodismo levaram-nos a abandonar, pouco a pouco, a criação do porco caseiro, os restos dos legumes e de comida passaram a aumentar as pilhas de lixo e somos aconselhados a comer outras carnes que não esta. Sinal dos tempos…
No entanto, na tradição, no paladar e nos sentidos de muita gente ainda continua a existir esse desejo de “voltar a casa”, aos sabores da infância que ficaram gravados no cérebro, quando não no coração. E isso leva-os a procurar nas feiras e mercados tudo aquilo que se diz ser “caseiro”, em “busca do fumeiro perdido”, para satisfação desse desejo. Só que, nessa procura, nem sempre encontram gente séria que venda o que apregoa, pois há quem “venda gato por lebre”, enganando os ingénuos e incautos.
O Jacob (nome fictício) costuma ir a algumas feiras com roupa de quem anda a trabalhar no campo, para ser convincente, vendendo fumeiro “caseiro”. Já o faz há alguns anos e até tem “freguesia” certa para os seus presuntos e salpicões, ditos “caseiros”. No entanto, como é que alguém que cria dois porcos em casa, consegue dar resposta à procura de várias dezenas de presuntos? Como é que dois porcos têm tantas patas? Boa pergunta… Ou são de uma raça rara, com tantas patas como as centopeias ou… “aqui há gato”.
Não é difícil, pois não falta quem forneça carcaças de porcos de pocilgas industriais para serem “pintados” de caseiros.
Só é preciso ser-se convincente e vender-se uma imagem e a ideia da satisfação de um desejo. Tal como na política. E depois? Volta-se (ou vota-se) sempre, ainda que ao engano….