O pão, com toda a sua história e simbolismo, é o alimento base de toda a alimentação humana. É o símbolo da comida em todo o mundo, o alimento dos alimentos. Por alguma razão foi abençoado por Cristo e continua a ser consagrado na Eucaristia.
Nasci quando as gentes da minha terra eram alimentadas a pão e “caldo” (hoje pomposamente chamado de sopa), sendo poucas as famílias que comiam “presigo”.
Ainda me lembro da minha avó debruçada sobre a masseira a enfiar as mãos na massa, feita com a farinha de milho que o moleiro levava lá a casa, a preparar as broas e metê-las no forno. A broa cozida e quente era, e continua a ser, um prazer para os sentidos, quer pelo paladar quer pelo cheiro. Cozia-se uma vez por semana mas havia quem o fizesse quinzenalmente ou com mais intervalo, chegando a comer-se broa já com bolor. Poucos eram os felizardos que comiam “molete”, o pão de trigo.
Quanto ao “caldo”, era feito com aquilo que cada um tinha, couves, feijões, batata, etc., e “adubado” com um pedaço de carne gorda da “caluba”, que em muitas casas dava para “adubar” o “caldo” a semana inteira. Como na maior parte das casas só havia “caldo” para comer, era servido em grandes “malgas” bem cheias, acompanhado de um naco de broa.
Ninguém dizia em caso algum “não gosto”, nem sequer as crianças faziam perrices para comer. Tudo era bem vindo.
O meu colega João contou-me que, a primeira vez que foi jantar a casa do seu futuro sogro numa aldeia do interior da Beira Alta, serviram um prato de bacalhau. Não estando habituado a dispor de azeite à discrição, serviu-se copiosamente, de tal forma que, quando acabou de comer, o fundo do prato ainda estava coberto desse precioso alimento. Da ponta da mesa o pai da namorada deu ordens à empregada para o servir novamente mas o João agradeceu e disse que não queria mais. Então, o futuro sogro insistiu com a empregada em voz firme: “Serve-lhe mais porque, quem deita tanto azeite no prato é porque quer comer mais…”
Mas, a partir dos anos sessenta as coisas foram melhorando e, com a industrialização, criou-se e distribuiu-se riqueza, surgindo uma classe média que quase não existia.
Com isso, passamos a assistir à rejeição da herança e das lições de vida que o passado nos dera. A comida, que antes minguava na maioria das mesas, passou a sobrar, a falta rapidamente deu lugar ao desperdício, usando-se, abusando-se e dando aso a exibicionismos e competições entre vizinhos e familiares para ver quem servia mais, em quantidade, em qualidade e em extravagância. Perdeu-se a noção e o respeito pelo “pão”, um bem essencial à humanidade e não só a cada um, e até atingimos um ponto em que “qualquer operário deitava mais comida no lixo do que os ricos tinham antigamente para comer”.
Um húngaro radicado em Portugal dizia-me que não compreendia porque é que os pais se sujeitavam à chantagem das crianças com as birras que faziam para não comer, querendo outra coisa, quando não uma guloseima. Se o seu filho se recusasse a comer, guardava-lhe o prato no frigorífico e era isso que lhe dava quando tivesse fome.
Vivemos um período de grande desperdício de comida e de alimentos para a confecionar, sem sequer pensarmos que que aquilo que desperdiçamos faz tanta falta a outros seres humanos que nada têm para se alimentarem.
Impõe-se uma ética especial face aos alimentos, um respeito pelo seu uso, porque fazemos todos parte deste planeta onde a sua produção é limitada. Tem de se acabar com o desperdício para que haja mais para distribuir por quem nada tem. O desperdício não aproveita a ninguém e, regra geral, só alimenta estúpidas vaidades e exibicionismos patéticos.
Mas continuamos a esbanjar alimentos das mais variadas formas, agora até institucionalmente ao aceitarmos os prazos de validade inscritos nas embalagens como limite quando, na maioria dos casos, a sua durabilidade vai muito para além dessas datas.
Ainda há dias estive numa pequena festa de aniversário, onde a comida que se serviu dava para o triplo dos convidados. Dei comigo a pensar que, mesmo em plena crise, não interiorizamos que temos de começar por nós, por sermos capazes de moderar os excessos, acabar com o aparato das grandes mesas só para que se diga “que grande jantar”, “aquilo é que foi um casamento” ou “nunca vi um serviço tão bom”. Todos assistimos a esses exageros, com esbanjamentos desregrados que só nos diminuem e menorizam.
E que não seja necessário sentirmos na pele, ou melhor, no estômago, a verdadeira falta de alimentos, coisa a que não estamos habituados. É que, para mal dos nossos pecados, já há entre nós quem viva esse drama… Em muitos casos, pessoas que num passado recente também fizeram parte dessa legião que promoveu o desperdício.
Todos têm o direito ao “pão nosso de cada dia”, independentemente da raça, credo ou religião, mas temos de saber dar-lhe o seu verdadeiro valor e rejeitar o poder de estragar e esbanjar. Saibamos parti-lo e reparti-lo como um bem que não é nosso… mas que é de todos, mesmo daqueles que não conhecemos…