Na grande vaga de emigração para França dos anos sessenta e setenta, assisti à partida de muitos familiares, amigos e simples conhecidos. A aventura era enorme, exigindo uma elevada dose de coragem que o desespero foi vencendo, pois partiam “a salto”, a pé, com a roupa do corpo e uma mala cheia de esperança, fugindo das autoridades, entregues a “passadores” de credibilidade duvidosa a troco de dinheiro, sem garantia de emprego nem de nada, num mundo desconhecido e hostil, a começar pela língua. Ali chegados, foram explorados, viveram em bairros de lata, sofreram o isolamento, trabalharam sem horários nem salário digno, sujeitos a tudo para conseguirem amealhar alguns francos. Voltavam no verão, ano após ano, mais velhos, mais cansados, mais confiantes e mais bem instalados, para dar melhores condições à família e um futuro aos filhos, sem emigração.
Ao longo das décadas seguintes houve mais vagas sem a dimensão desta, com outros destinos mas pelas mesmas razões, já mais informados mas nem sempre livres de enganos e da exploração, procurando apoio em compatriotas que por lá andavam.
A crise que estamos a viver abalou a nossa sociedade, trouxe a falência das empresas e o colapso do emprego. Com a falta deste, uma grande avalanche de gente rumou ao estrangeiro, tristes ou até revoltados, em busca do que deixaram de encontrar no seu país, apesar das habilitações académicas de muitos deles, que de nada lhes serviu por cá.
No coração de cada jovem que se vê sem emprego e sem perspetivas de o vir a encontrar, mora a angústia de pensar que terá de seguir o caminho que fizeram os pais ou os avós, deixando a família, a terra, os hábitos e a cultura para sobreviver, para resolver o drama de cada um, atirando para o caixote de lixo ou do adiamento, os sonhos de viver, trabalhar e fazer parte da construção do seu país.
É longe de casa, do seu povo, da sua aldeia, que se sente a separação, que o coração aperta e a memória relembra os entes queridos. Sentem-se as saudades do sol maravilhoso, do calor das pessoas, dos amigos, dos cheiros e dos sabores, ganha-se noção do que é ser português. E sente-se o fado, porque o fado passou a ser a sua vida.
Como o desconhecido mete medo, o escape é juntar-se a outros portugueses, em clubes, associações ou nos bairros, em todo o tipo de festas como motivo de se reunirem, se animarem e apoiaram uns aos outros, em sardinhadas ou jogos de futebol, mas sempre juntos.
Sempre tive um profundo respeito por todos aqueles a quem a vida empurrou para a condição de emigrante, e sinto-o hoje muito em particular com a ausência dum ente querido, tendo de abdicar das suas vidas para abraçarem outra vida, deixando tudo para trás, carregando o pesado fardo da saudade, da amargura e da solidão.
O curioso, é que nem sempre é reconhecido esse sacrifício e esse mérito, nem onde se está nem de onde se vem, havendo mesmo casos de falta de respeito pela sua condição. Mas, mesmo sabendo que a sua terra não lhe deu condições para cá viver, não deixa de enviar as suas economias para os seus, para o seu país, acabando por ser uma força económica ao seu serviço, apesar de estar fora.
E a verdade é que, ser emigrante, é sentir que não se pertence lá mas também já não se pertence aqui. É como ficar no limbo, esvoaçando no espaço virtual entre fronteiras, suspenso sobre o nada…
Como testemunho dessa realidade, não resisto à tentação de transcrever algumas passagens de um desabafo quase dramático de Alexandre Rodrigues, emigrante em Londres:
“Já não sou o mesmo que partiu. Essa personagem é hoje uma velha memória. O país que me acolhe vai moldando a minha consciência e, no entanto, sou suficientemente estranho nele…
…E o português em mim morre a cada dia que passa, cada vez menos português, cada vez menos ruidoso, cada vez menos refilão, cada vez menos deprimido… Cada vez que vou a Portugal sinto-me como um turista, um visitante (sou um visitante), que se sente cada vez mais distante do passado e que vê a vida dos amigos e familiares continuar sem ele.
Sou como um morto. Quando alguém morre, sente-se saudade e tristeza, mas a vida continua… Sinto-me como uma espécie de morto que de vez em quando se levanta do seu túmulo frio e visita os familiares e amigos…. Depois, a vida encarrega-se de os distrair e o morto volta para o seu túmulo, lá para esse país onde vive, essa espécie de paraíso ou inferno conforme os olhos de cada um. Por mim, é o limbo…
…E, no entanto, sinto a falta das pessoas que deixei para trás… e nós saímos do nosso outro mundo, do túmulo, para estar com eles… e depois queremos voltar para o país de acolhimento, sete palmos debaixo de terra ou sete mil léguas de distância, tanto faz…”
Mas, apesar de ter descido aos infernos ou subido ao céu, o sonho de todo o homem é voltar à terra que o viu nascer, se possível, bem sucedido.
Saibamos ser dignos do seu sacrifício, honrando-os e respeitando-os (e nem sempre tem havido respeito), até porque neste mundo em que tudo muda tão depressa, não estamos livres de ter de lhes seguir o caminho. E, à boa maneira portuguesa, estarão lá de braços abertos para nos receber…