Estava a olhar para as estatísticas – fica bem e dá um ar de entendido – e uma pergunta me vem à boca: Porque é que nas primeiras eleições autárquicas 2,5 milhões de comodistas ficaram em casa e mandaram o voto “à fava” enquanto nestas últimas, trinta e quatro anos depois, já foram 4,5 milhões que preferiram outros programas? A uma conclusão chego: Se a evolução da abstenção continuar neste ritmo, em poucas décadas só vão votar os candidatos e, talvez, as famílias.
Para mim, isso deve-se aos muitos “alternativos”, como ir ao centro comercial, ele para deitar o olho às “garinas” enquanto ela vê as montras e limpa o ranho às crianças, ou ir às vindimas no Douro ou até passear na Foz em dia de sol. Já para os analistas, a razão é o desencanto e o divórcio do povo com políticos e partidos.
A seguir à revolução, o povo depositou grandes esperanças naqueles que se guindaram ao poder, acreditando que, em democracia, a governação seria transparente, desinteressada e colocaria sempre e em primeiro lugar o país e o povo. Mas a realidade foi bem diferente, gerando muito maus governantes mas muito bem governados, com tráfico de influências e corrupção, distribuindo benesses e empregos à família pessoal e política, usando muitas vezes o poder de forma discriminatória, prepotente e arrogante, com tiques de caciquismo. Se houve casos de boa gestão e seriedade, felizmente, outros pautaram-se por um mau serviço à causa pública em prol do partido, do grupo ou dos interesses pessoais, sob um regime de impunidade.
Nas primeiras eleições havia inocência e candura na maioria dos envolvidos no processo, num tempo de aprendizagem das questões políticas em que (quase) ninguém tinha o objetivo de ser candidato, nem corria atrás de “tachos”. Puro idealismo. Mas, eleição após eleição, o idealismo foi dando lugar ao oportunismo e à corrida ao “poleiro”.
A verdade é que o povo acreditou, ou venderam-lhe essa ideia, de que ao outro dia da revolução todos eram democratas, sérios, pessoas de bem (e não à procura de bens),sem segundos interesses, como se renascidos, santificados e impolutos. Mas não eram os mesmos do dia anterior?
Claro que é ingenuidade do povo esperar que, quem os vai governar, esteja somente preocupado com os outros, com uma boa gestão e de tratar a todos por igual. É um desejo… que não passa disso. Não é um sonho? Uma utopia? Afinal, de onde é que eles nascem? De onde emanam? Não é do meio de nós, da sociedade que temos e somos? E o que esperamos, se somos a sociedade que somos? Que dela só ascendam ao poder os impolutos, uma espécie de semideuses que brotam purificados no meio disto?
É que todos sabemos (ou fingimos que não?) que somos uma sociedade de corruptos, vigaristas, golpistas e ladrões, da comissão, da “cunha e do favor, do compadrio descarado, do jeito, do presunto ou do cesto de frangos (agora substituído pelo envelope para comprar a capoeira, quando não, o aviário), da chantagem e da mentira. Ou temos medo de o admitir? Por quem aceitamos ser fiadores? A quem emprestamos dinheiro? Deixamos as portas abertas? Confiamos em quem?
Um antigo chefe dizia-me que toda a gente se vende, era uma questão de preço. No seu caso, só ainda não sabia qual. E não estava longe da realidade, pois há quem se venda (é um termo forte, talvez seja preferível dizer “disponibilize”) por uma jaqueta, um relógio (de ouro ou de latão), uma jantarada ou umas férias com a barriga ao sol cheia do “bom e do melhor”, por umas garrafas de vinho ou pela garrafeira. Mas há quem nada disto aceite até ao dia em que lhe oferecem uma moradia na praia ou um apartamento na cidade a troco de uma coisa tão simples como fechar os olhos ou assinar um papel…
Seria ingenuidade pensar que, se as pessoas no dia a dia são assim, se tentam enganar os outros das piores formas, quando se lhes entrega as rédeas do poder onde o controle praticamente não existe, o que é que se pode esperar? Milagres? Que só nos calhem os honestos? Ou os “santos” (esses estão mais confortáveis nos altares do que na cadeira do poder)? É como pôr uma raposa a guardar o galinheiro… Até se pode acertar e entregar o poder a alguém honesto e merecedor dessa confiança mas, aqueles que o carregaram às costas até à cadeira do poder, (quase) sempre acabam por apresentar a fatura…
É a nossa condição humana, uma questão cultural que a democracia e a instrução não resolveram. Pelo contrário, após a revolução de Abril os princípios e valores morais ruíram como um baralho de cartas, dando-se importância ao “Ter” a qualquer preço, num materialismo desenfreado que deixou os princípios à porta.
E os idealismos, as causas, as utopias? O que é isso, pergunta-se hoje? Coisas de antigamente, tipo bota de elástico. Importam os lugares para a rapaziada, o acesso às benesses e, se o poder mudar, haverá novos rapazes. Sim, porque em Portugal, sempre que muda o poder, e seja qual for o partido, encarregam-se de substituir todas as chefias dos serviços públicos por apaniguados, mesmo que incompetentes. Já depois destas eleições, um desses onde mudou a cor, dizia: “E onde vou agora arranjar um lugar a ganhar quatro mil euros?”
Os políticos são o espelho da sociedade, nem melhores nem piores, pelo que Eça de Queirós já recomendava que “políticos e fraldas devem ser mudados com frequência, pelas mesmas razões…”
A verdade é que quatro milhões e meio de portugueses, desiludidos, revoltados ou por comodismo, ao virarem as costas ao ato eleitoral, deitaram fora a única arma que têm para escolher ou dizer “NÃO, NÃO VOS QUERO”. E, ao abdicarem do seu uso, criam condições aos tais em quem não acreditam, para um dia se elegerem vitaliciamente e fazerem as suas próprias regras, sem que o povo faça parte delas. E há muitos a quem vontade não falta, por maior que seja a sua diarreia verbal sobre a democracia…