Se a vida te dá melões… come melão

“Vamos acordar, pessoal. São seis horas”. Acordo com o acender da luz e o chamamento à porta do quarto por alguém que não conheço. “Onde é que estou ”, interrogo-me ainda ensonado? De repente lembro-me, estou no Pantanal, a dez mil quilómetros de casa, entre amantes da pesca e longe do conforto. “O que faço eu aqui? Como é que vim aqui parar?”

Conheci o “Seu” Marcílio há alguns anos e, a partir daí, fomos falando ora pelo telefone, ora pessoalmente. Desde o primeiro dia me falou das suas pescarias nos rios do Brasil, com especial relevo na pesca do jáu, um peixe que pode atingir os cem quilos. Na brincadeira, disse-lhe que um dia ia lá apanhar um desses bagres e, sempre que falávamos, alimentava essa ilusão com perguntas sobre o jaú, se estava a cuidar deles, etc..

Foi assim ao longo de anos, com ele e a filha Luciana a insistirem para os ir visitar. Como tive de ir a São Paulo, dei mais uns dias à viagem e fui a Maringá para esse reencontro, só que não esperava um programa completo de uma pescaria no rio Paraguai, em pleno Pantanal, mil quilómetros a norte. Dei comigo na “caminheta” (a nossa pickup) com o “Seu” Marcílio e o cunhado “Seu” Osvaldo, rumo a Albuquerque, pequena localidade junto à Bolívia, para nos juntarmos a mais cinco pescadores na casa de pesca do “Seu” Darci, onde chegamos ao fim de um dia de viagem. Ali estava eu…

Sentado na cama, olhei os companheiros de quarto a vestirem roupas apropriadas com bonés de aba traseira e rede frontal para proteção contra os mosquitos. “Mas não venho preparado”, penso eu…

Vou para a cozinha e a azáfama dos pescadores aumenta, arranjando todo o tipo de apetrechos para a pescaria. É preciso levar um barco, motor, gasolina, bateria suplente e outros acessórios, para além de todos os instrumentos de pesca, desde as canas, fio, aparelhos, anzóis e milhentos pequenos acessórios e ferramentas, para resolver problemas em pleno rio.

Saio de casa para ajudar a carregar a “caminheta” e sou atacado por uma nuvem de “pernilongos” (mosquitos) que me obrigam a recuar para dentro e “enxofrar-me” com repelente nas partes visíveis do corpo, a tapar a cabeça com um barrete que o “Seu” Marcílio me emprestou e a apertar bem as mangas da camisa.

Ao pensar no meu desconhecimento dos princípios básicos da pesca e na impreparação para a batalha com os mosquitos, pergunto-me: “Que raio estou aqui a fazer? Não será melhor ir-me embora? Ou ficar dentro de casa, protegido dos insetos picadores”?

Mas não, nem pensei mais. Se a situação não era cómoda, não deixava de ser uma grande oportunidade de fazer algo diferente e conhecer a beleza do Pantanal, e havia que aproveitar o momento.

E valeu bem a pena pois, apesar dos “pernilongos”, que também farão parte das recordações desta viagem, foi excepcional conhecer aquela região do Brasil e todas aquelas aves no seu habitat natural, do beija flor (colibri) ao tucano, das araras aos papagaios, dos gaviões ao joão de barro, da grande ema ao bem-te-vi e tantas outras que de que não sei o nome mas que são lindas. E os crocodilos, os macacos, as capivaras, a variedade de árvores, arbustos e plantas, o rio Paraguai e o seu afluente Miranda, as pousadas e hotéis sobre estacas por causa das cheias, a esperança dos pescadores na pesca “daquele peixe grande” que a fotografia perpetuará… (atenção, eu pesquei e tenho fotos disso). E, finalmente, o convívio franco e amigo de um grupo onde a regra é “o amigo do meu amigo, meu amigo é”.

Ficaram-me as histórias do Teixeira que nos fizeram rir muito, do José e o milagre com a sua mãe de 93 anos, do João e da sua camisola do centenário do Santos que lhe custou quatro mil reais e do Péricles, que já foi casado com uma senhora do Porto.

A lição de vida do Darci, que nunca teve sapatos em miúdo mas era engraxador e que venceu no meio de um ambiente hostil, muito graças à firmeza de princípios da mãe.

E, claro, da simpatia, amabilidade e da paciência do “Seu” Marcílio e do “Seu” Osvaldo comigo, eles sim, dois pescadores, companheiros que não esquecerei. Tudo valeu a pena, foi uma experiência única, uma viagem para recordar.

E tudo isto para dizer que a vida conduz-nos muitas vezes a locais ou situações para os quais não estamos preparados ou não gostamos, companhias incómodas, uma festa, uma cerimónia, uma viagem, umas férias num local que a família escolheu contra a nossa vontade. Porque não aproveitamos e vivemos esses momentos, olhando-os pelo lado positivo em vez de nos incomodarmos e incomodar os outros? A vida flui, levando-nos a cenários imprevistos. Porquê recusar apreciá-los? Em tudo há um lado belo, saibamos transformar um incómodo numa oportunidade em vez de fazer de menino birrento que vai contrariado (e amuado) com os pais, porque não gosta, porque quer outra coisa.

Estás aqui apenas para uma visita rápida. Não te preocupes, nem te apresses, e tira partido de tudo por mais imprevisível que seja pois, provavelmente, serão as memórias que mais vais recordar. Por isso, se a vida te dá melões… come melão.

 

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