A honestidade paga com a ingratidão

A notícia passou há dias na TV e, provavelmente, em todo o mundo. Um sem abrigo de Boston encontrou uma mochila com cerca de cinquenta mil dólares e, apesar das suas necessidades e da sua condição, foi entregá-la às autoridades para ser devolvida ao seu verdadeiro dono, dizendo que o fez porque “Deus sempre cuidou bem de mim”. Com este ato de honestidade e honradez, um homem invisível aos olhos de quem com ele se cruzava, tornou-se um herói nacional, reconhecido e distinguido pelas entidades locais, vindo a ser  beneficiário de uma angariação de fundos em onda de solidariedade que ultrapassou os valores existentes na mochila.

Sendo esta uma boa notícia, merecedora de ser divulgada até por se tratar de um cidadão remetido ao mais baixo escalão da hierarquia social, pareceu-me também como que a exibição de uma raridade – ao que parece, os valores daquele ato também não abundarão para aquelas bandas – um modelo moral para uma sociedade demasiado materialista.

Mas será que estas coisas só acontecem na América? De maneira nenhuma. Felizmente, entre nós ainda existe quem preserve valores como a honestidade, a dignidade e a honradez, não se deixando cair na tentação do dinheiro fácil, só que muitas vezes passam pela indiferença dos que as conhecem e que as remetem para o caixote do esquecimento, não sendo motivo para notícia, nem para campanhas de solidariedade e distinções.

Uma pessoa amiga falou-me elogiosamente da senhora Maria, mulher simples e caseira de uma quinta em Lousada que, quando ele lhe falou da possibilidade de ela autorizar a venda de um dos campos da sua quinta, respondeu-lhe prontamente: “Fale com o senhorio, pois ele é que é o dono. Se quiser vender, por mim não há problema”.  E assim foi, o campo foi vendido e a senhora Maria nada exigiu em troca, mesmo sabendo que a lei lhe conferia certos direitos que, na prática, normalmente se traduzem numa indemnização monetária de que a maioria dos caseiros não abdica. Uma posição rara e de elevado sentido moral, sobretudo vindo de alguém cuja condição económica era precária.

Mas, mais tarde, falou-me de um outro acontecimento passado com esta senhora, que vale a pena contar. Eis a história real.

Era ela caseira de uma outra quinta, também em Lousada, quando lhe pediram para fazer uma “muda” (serviço de mudanças). A mulher que lhe encomendou o serviço recebera a herança de uma velha tia, pelo que era necessário carregar todos os bens herdados para sua casa. Quando procedia ao carregamento, aquela perguntou-lhe se queria aproveitar algum dos móveis, já muito velhos, porque ia rachá-los para lenha. Agradeceu e escolheu uma cama e um roupeiro que, de passagem, deixou em sua casa, antes de ir descarregar as tralhas na residência da cliente.

Acabado o trabalho, regressou à quinta para preparar o almoço e foi surpreendida pelos filhos a exibirem dois volumosos maços de notas de cinco contos, uma pequena fortuna à data. “Oh mãe, olhe o que encontramos num gavetão do roupeiro”, disseram os rapazes. Sem hesitações, tomou conta dos dois volumes e respondeu: “Este dinheiro não é nosso, tenho de ir imediatamente entregá-lo à dona”.

Assim, deixando o almoço por fazer e feliz pelo achado, dirigiu-se a casa da herdeira para dar-lhe conta da boa nova e entregar-lhe os maços de notas, sem sequer se dar à curiosidade de saber o valor. Aquela, ao ver a “cor” do dinheiro, ficou confusa mas foi dizendo: “Corremos os bancos todos e não sabíamos onde parava o dinheiro da minha tia. Está aqui todo? Não estará lá mais algum escondido?” perguntou-lhe a herdeira, deixando uma certa suspeita no ar. – “Olhe, se quiser venha lá ver” respondeu-lhe de pronto, mas ela acabou por rejeitar. No entanto, soube posteriormente comentar com uma vizinha que “se ela me trouxe a casa dois maços de notas, se calhar, ficou com mais do que aqueles que me levou”…

O prémio para a honestidade foi a ingratidão e a dúvida lançada sobre si, por alguém que lhe devia estar grata e respeitar, mas a quem a ganância e avidez não deixou enxergar para além do seu umbigo.

Não estiveram lá os jornais nem a televisão para promoverem a honorabilidade desta mulher simples e humilde, cuja riqueza maior está muito para além da sua condição que a fez aproveitar os móveis velhos, nem para contar a história ao país e ao mundo e mostrar tão valioso exemplo de honestidade e dignidade, algo que ainda nos faz acreditar na bondade do ser humano, nos valores perdidos e agora (quase) só encontrados no coração dos simples.

Ela seguiu à letra as palavras de Jesus, “a César o que é de César…” e provou-nos que a honestidade está no caráter do ser humano e não na roupa que ele veste, que não se promete, pratica-se, obedecendo incondicionalmente às mais elementares regras morais.

Atualmente o conceito de honestidade está deturpado pois, quem age corretamente, é chamado de “burro” ou “tolo”, quando não humilhado. Ora, ao não se desviar do que é digno a troco de coisa nenhuma, neste caso de dois maços de notas, na honestidade e no reto procedimento denunciou a formosura da sua alma.

Chama-se Maria (não me permitiu que revelasse mais do seu nome), cultiva como caseira uma quinta em Pias, tem um coração enorme e foi para mim uma honra conhecê-la.

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