O Espingardeiro

Há quem tenha nascido na época errada. Foi o caso do Alberto espingardeiro, nome como ficou conhecido não só entre as gentes de Lousada como entre caçadores e amantes de armas de fogo no norte do país, pois o seu engenho, arte e criatividade faziam com que merecesse ter nascido num outro tempo, com outros meios e oportunidades, que o seu talento natural mereciam.

Filho do senhor Paulino, trolha de profissão, e da senhora Albertina, era o mais velho de três irmãos de uma família humilde. Se durante algum tempo trabalhou como latoeiro, a sua habilidade e criatividade naturais levaram-no a aprender por si próprio os segredos das armas e a fazer autênticas maravilhas nesta arte, num tempo em que não existiam meios tecnológicos para a exercer. Já casado, vivia em Cernadelo mas tinha a sua oficina em metade de uma garagem que o meu pai construíra perto de casa.

Foi assim que desde a escola primária eu passava muito dos tempos livres na sua oficina para o “ajudar” a polir armas antes do “banho”, a acender a forja até pôr o ferro em brasa ou a fazer outra coisa qualquer. E ele sabia entusiasmar um miúdo como eu.

Ofereceu-me como prémio alguns revolveres velhos, que guardei como se tratasse de um grande tesouro, fazendo-me sonhar com aventuras de índios e cowboys. Não havia arma que não reparasse, independentemente de lhe ser familiar ou não e da gravidade da avaria, pois era só uma questão de tempo para a estudar. Caçadeiras de canos rebentados, gatilhos partidos, revolveres e pistolas com avarias mais ou menos complicadas, todas tinham solução nas suas mãos. Como não existiam peças para substituir as avariadas, fabricava-as a partir de uma barra de ferro, com uma precisão milimétrica Nas mãos dele vi nascer de pedaços de madeira, geralmente de nogueira, coronhas de espingarda que eram autênticas esculturas, trabalhadas artesanalmente com ferramentas rudimentares que fazia propositadamente para o efeito, e envernizadas com cuidado. A oxidação das partes metálicas, num “banho” especial por ele desenvolvido, dava aos canos e outras peças uma cor e um brilho tal, que as armas ficavam como novas.

Viajava na sua velha motorizada de capacete enfiado na cabeça, sempre a uma velocidade arrastada como se nunca tivesse pressa de chegar a lado nenhum. O almoço comia-o na oficina, afastando a ferramenta para o lado e fazendo da bancada de trabalho a sua mesa de refeições. E depois deste, prolongava o prazer da “mesa” deleitando-se a tocar flauta.

Era um bom conversador, sempre com resposta na ponta da língua, alguém com quem o tempo não aborrecia. Tinha um sentido crítico muito próprio e bem humorado, com conversas armadilhadas de gozo.

Num domingo depois da missa, eu ia para casa do Arnaldo e ao passarmos sobre o regato no lugar das Casas Novas, vimos bastantes peixes no canal que levava a água ao moinho, entre os quais uma truta razoável, meios zonzos, fruto de asneira grossa que alguém tinha feito dias antes no regato e da qual eu havia sido espectador inocente. Ao ver os peixes naquele estado, como tinha “culpas no cartório” e para “apagar indícios”, o Arnaldo tirou os sapatos, arregaçou as calças e meteu-se na água que não lhe chegava aos joelhos, para os apanhar. No momento ia a passar o espingardeiro na sua motorizada que, ao vê-lo naquela figura, parou e ficou a apreciar a cena.

Como o Arnaldo não conseguia apanhar a truta que, meia zonza, teimava em escapar-lhe, disse-lhe em tom conselheiro: “Apanha-a bem se a pescar “ao gueto”. O Arnaldo olhou-o e na sua inocência perguntou “como é que se pesca ao gueto”? Com ar de santo respondeu-lhe: ”Vire as costas à truta, desça as calças abaixo, ponha um bocado de pão no rabo e meta-se na água; quando a truta for comer o pão, aperta as bochechas e apanha-a”. Foi risada geral entre os miúdos que também vinham da missa e à nossa volta assistiam à “pescaria”.

Olho para trás do tempo e ainda ouço as notas da sua flauta e as suas conversas humoradas. Mas sobretudo, relembro um Homem humilde mas muito inteligente, de rara habilidade e poder criativo que, apesar de não ter vivido no tempo que merecia, foi um artista excepcional na sua arte.

Pela importância que teve nas pequenas coisas que me ajudaram a crescer, só posso dizer: Obrigado, senhor Alberto espingardeiro.

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