Joaninha, voa, voa…

Lembrei-me hoje que neste verão vi uma joaninha, coisa que já não me acontecia há muitos anos. De um vermelho vivo e pintas pretas, lá estava ela pousada numa folha. O grilo, a “cornela” e a joaninha foram os três insetos que fizeram parte das minhas brincadeiras de criança, ocupando o lugar dos sofisticados brinquedos de hoje.

O grilo encontrava-o nos montes, guiado pelo seu gri-gri que não é mais que um roçar das asas para atrair a fêmea. Aproximava-me sorrateiramente para descobrir o seu esconderijo, um buraquinho na terra, onde se escondia ao sentir a minha presença. Para o tirar, apanhava uma “palheira” comprida que enfiava no buraco, rolando-a constantemente, enquanto recitava a lenga lenga: Grilinho sai sai, que aí vem o teu pai Com uma faca de cartão, que te corta o coração. Mais empurrado pelas cócegas da “palheira” do que pela cantoria, o grilo lá saía e guardava-o numa caixa de fósforos com buracos para entrar o ar, o antepassado das modernas gaiolas de hoje, onde era alimentado a folhas de alface.

A “cornela”, nome pelo qual era conhecido um grande escaravelho, apanhava-a nas “nocas” dos carvalhos a que subia com facilidade. Agarrava-as pelo dorso para não me apertarem os dedos com as suas garras, amarrava-lhes uma linha à pata e fazia com que voassem à minha volta, presas pela linha, qual avião telecomandado.

A joaninha era o mais pequeno e mais colorido dos três, sendo tido como portador da sorte. Sempre que encontrava uma, e acontecia muitas vezes, passava-a da folha onde estava para as costas da mão e entoava uma cantilena na tentativa de a fazer voar: Joaninha voa, voa, que o teu pai foi para Lisboa Que lá está tua madrinha, que te dá pão e sardinha. E quando levantava voo, corria atrás dela repetindo o refrão, como querendo que ela voasse eternamente.

Os anos passaram, deixei de brincar com os três insetos que fui vendo cada vez menos, até deixar de ver joaninhas, ao mesmo tempo que descobria a sua importância para todos nós e daí ser considerada como portadora da sorte.

No mundo dos insetos, as joaninhas são predadores que se alimentam de outros insetos, quase todos prejudiciais às plantas, tais como afídios, mosca da fruta, pulgões, piolhos da folha, etc., podendo comer 50 pulgões ou mais por dia, ajudando ainda na polinização.

Com estas ações, são benéficas para o ser humano em geral e os agricultores em particular mas, paradoxalmente, são estes o seu maior inimigo. A explosão demográfica e a melhoria das condições de vida implicaram um aumento das produções agrícolas pelo que houve que “desenvolver” a agricultura, criando e utilizando pesticidas para combater animais e plantas considerados nocivos.

Foi com os inseticidas que se passaram a eliminar os escaravelhos, os pulgões, as moscas da fruta e outros. Os mais velhos ainda se lembram do DDT, um pó “milagroso” que o “ministro” de Meinedo vendia nas feiras para matar piolhos, com o slogan de “mata toda a bicharada”. E matava mesmo…

Foi um inseticida que deu o prémio Nobel ao seu inventor, e que serviu para combater insetos portadores da malária e até passou a ser usado para matar pulgas e piolhos. Mas o seu criador e os utilizadores não se preocuparam com os efeitos adversos, e até os escamotearam. “Esqueceram-se” que ao matar os insetos nocivos também matavam os insetos amigos, como a joaninha, para além de deixarem resíduos que o tempo não fazia desaparecer.

Só quando Rachel Carson em 1962 publicou o seu livro “Primavera silenciosa” é que, renitentemente, os americanos e depois o resto do mundo, acordaram para o problema. No seu livro trouxe à luz do dia os problemas do DDT e fazendo ver que “todos os seres vivos dependem uns dos outros e de um ambiente saudável para viver”. Relatou casos da presença do pesticida no leite materno das mulheres, nos tordos de Cap Cod, que morreram todos, e elevadas concentrações de DDT em pinguins, ursos polares e até nas baleias da Gronelândia, que viviam em zonas virgens, a milhares de quilómetros dos locais onde o produto foi aplicado.

Dizia ela que “ o homem é parte da natureza e que a sua guerra contra a natureza é, inevitavelmente, uma guerra contra si mesmo”. O DDT viria a ser proibido, mas seguiram-se novos pesticidas com novos efeitos secundários, muitos dos quais viriam também a ser proibidos anos mais tarde, e outros vieram e continuam a ser aplicados, tantas vezes de forma criminosa.

A verdade é que as joaninhas praticamente desapareceram e bom seria que tivessem condições para voltar e viver. E ao falar das joaninhas falo de milhares e milhares de espécies, importantes para o equilíbrio do meio em que vivemos e que praticamente foram extintas ou estão em vias disso, pela ação arrasadora do ser humano. Cada um de nós, tantas vezes inconscientemente, contribui todos os dias para a destruição do tal “equilíbrio ecológico” e para a própria sustentabilidade, incluindo a nossa.

Em nome do desenvolvimento, hipotecamos a vida das futuras gerações onde já não sei se haverá meio ambiente com condições para as Joaninhas e tantos outros seres vivos sobreviverem, incluindo nós, no ecossistema de que todos fazemos parte.

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