Regressado de Moçambique onde cumpri dois anos de serviço militar, voltei à vida civil quase quatro anos depois de a ter deixado, aproveitando para fazer um breve “repouso do guerreiro” que nunca fui, embora rapidamente tive de procurar o ganha-pão.
Em tempo bem diferente daquele que hoje vivemos, não esperei muito para me tornar funcionário público na Estação Agrária do Porto, onde conheci o engenheiro Macedo, responsável do Departamento de Horticultura, que um dia me levou à Mantex, uma das primeiras fábricas de confecção, instalada junto à estrada Porto-Vila do Conde, para comprar camisas.
De acesso muito restrito e num tempo em que ainda não existiam as “Lojas de Fábrica”, fomos recebidos pelo dono que nos deu livre acesso ao armazém para escolhermos e comprarmos camisas a preços incríveis. Trouxe seis por noventa e seis escudos (menos de cinquenta cêntimos na moeda atual), quando numa loja custariam cento e cinquenta cada uma.
Uns dias depois, aperaltado com uma delas, aproximei-me dum colega e perguntei-lhe: – “Guilherme, gostas desta camisa”? – “Quanto custou” perguntou ele de imediato. –“Dezasseis escudos” respondi eu, inocentemente. Ele chegou junto de mim, apalpou a camisa com um ar de entendedor e disse: – “Vê-se bem que não presta”. Chocado, fingi não ouvir e desviei a conversa.
Alguns dias mais tarde fiz questão de me aproximar novamente dele para que reparasse noutra camisa, igual à anterior mas de cor diferente, e mordeu o isco, dizendo: – “Essa camisa é bonita. Quanto te custou”? – “Cento e cinquenta escudos”, atirei eu para ver a reação. E ele, apalpando novamente o tecido, afirmou com um ar de quem não tinha feito outra coisa na vida: – “Vê-se bem que esta é de grande qualidade”. Não vale a pena contar o resto da conversa com alguém cujo conhecimento sobre a qualidade da camisa, mesmo apalpando o tecido, se baseava só, mas mesmo só, no seu preço.
E a vida foi-me mostrando isso mesmo, que a maioria das pessoas não percebe se um produto é bom ou mau, se o tecido, o cabedal ou outro material é de primeira ou se é refugo, e por isso o preço é o indicativo da qualidade: O caro é bom, o barato não presta.
Contava-me a minha avó que no tempo do volfrâmio, os novos ricos feitos à custa deste, iam à feira comprar fatos, mas nenhum lhes servia apesar do feirante lhes ir mostrando os melhores que tinha. Só quando tirava da carroça um fato de “fioco”, o pior tecido de então, mas tendo o cuidado de “avisar” que aquele era de um tecido “especial” mas se calhar caro demais para as suas bolsas, é que atraia a atenção dos clientes. E o resultado era imediato, compravam dois ou três a preços exorbitantes, porque esses é que eram suficientemente bons para homens como eles. Afinal, o que queriam comprar era “reconhecimento social” e não um fato.
Foi assim que apareceram as marcas, impingidas e gravadas pelo marketing a fogo na cabeça dos consumidores, cuja compra passou a ser uma das condições para “a integração social”. É verdade que desde então, fizeram-se leis para proteger o consumidor de fabricantes ou vendedores sem escrúpulos, mas não suficientes para proteger o consumidor de si próprio. E o caso que relato a seguir, ocorrido numa loja de Lousada, pelo caricato e absurdo, demonstra bem como o homem se tornou escravo e dependente da exibição do dinheiro, presunçoso e poço de vaidades, sem se aperceber, como dizia Francis Bacon, que “os vaidosos são o escárnio dos homens sábios, a admiração dos tolos, os ídolos dos parentes, os escravos das suas próprias jactâncias”. E vamos ao acontecido.
Um homem viu uns sapatos na montra de uma sapataria local e entrou na loja pedindo para os experimentar. Calçou-os, andou um pouco, gostou, elogiou-lhes a qualidade e conforto e disse à senhora da sapataria que ficava com eles. Mas, como tinha de ir à loja do lado (de roupas de marca), pediu para lhos guardar que voltava de seguida.
Realmente apareceu cerca de meia hora depois e a senhora entregou-lhe o saco com os sapatos. Perguntou quanto devia e quando lhe disse “são sessenta euros”, olhou-a com espanto e perplexidade no rosto, o que fez com que ela ainda justificasse o valor como sendo o preço corrente.
Então, o cliente devolveu-lhe o saco e disse-lhe: – “Obrigado, mas já não quero os sapatos. Prefiro comprar uns de cento e oitenta euros que vi na loja do lado…” E saiu porta fora em direção à dita loja… Os sapatos eram óptimos até saber que o preço era … normal. E como ele não era … “normal”, sapatos a preço… normal, apesar de ter gostado deles, não cabiam na sua … (a)normalidade. Para este cliente o que lhe devia ter sido vendido era o fato de “fioco” ao preço de caxemira.
Parece-me que no caso deste tipo de clientes, além da marca que costuma vir gravada nos artigos, também devia vir impresso o preço, em letras gordas e bem visíveis, se possível a tinta fluorescente para chamar mais a atenção e fazer-nos roer de inveja, dando “grandeza” ao ego do felizardo. Até me apetece dizer que, esta obsessão pelo preço na procura de “status social”, no sentimento que isso lhe traz valorização pessoal, imagem e poder, mesmo abdicando de coisas de que gosta e num país desigual como o nosso, devia ser considerada crime, pois é uma forma de agressão social, uma afronta aos milhões de portugueses que passam dificuldades, como era o caso de quem o atendeu e por quem não teve respeito.
Sei que a vaidade já ultrapassou a estupidez há muito tempo, mas este caso está para além da minha compreensão, pelo que fui à minha pequena biblioteca repescar o livro “Filosofia da Vida”, de Will Durant, que já li há muitos anos, para o reler e ver se lá encontro uma explicação para este comportamento, que só confirma o velho ditado: “Quanto mais conheço os homens…”