Nasci em plena Segunda Guerra Mundial e por ela fiquei marcado, não pela guerra em si, de que não tenho memória alguma, mas pela falta de todo o tipo de bens, pelo racionamento, por um tempo de nada haver e tudo ter valor por mais pequeno que fosse. Por isso fiquei com o hábito de apanhar e guardar tudo, desde um prego a um pedaço de madeira, porque me poderia ser útil amanhã. Diziam-me “guarda o que não presta que encontrarás o que te é preciso” e como era um tempo de haver muito pouco, todo o pouco era muito.
Com o surto industrial local, desde a FAMO, à ESTOFEX e à “KISPO” – e desculpem-me por me referir à marca e não à empresa, mas foi aquela que ficou na memória do povo – chegou a criação de emprego e a produção de riqueza, que levou à urbanização, puxando pela indústria de construção civil e de todos os sectores desta atividade e de outras, num crescendo permanente até ao final do século passado. E essa espiral ascendente de criação de riqueza rapidamente se fez acompanhar do seu irmão: O consumo.
Começou por se comprar tudo o que eram bens essenciais, a que se tinha um acesso limitado até então, mas rapidamente se estendeu a todo o tipo de bens. Comprou-se casa e carro, móveis e eletrodomésticos cada vez mais sofisticados, compraram-se máquinas fotográficas e de filmar, chegaram os telemóveis e compraram-se de todos os tipos, dos Iphones a Ipads sem preocupações com o “Ai podes?”, com os bancos a empurrarem o dinheiro pela porta fora oferecendo crédito barato, com publicidade como “tenha tudo com que sempre sonhou”, “vá de férias e pague depois”, etc., etc.. E até veio a CEE para nos “dar” dinheiro a rodos, que alimentou o consumo de produtos vendidos pelos nossos “dadores”, fazendo com que o dinheiro voltasse ao bolso de onde saiu.
Os comércios multiplicaram-se a um ritmo alucinante, seguindo-se-lhes as cadeias de supermercados que nos acabaram de arrasar as bolsas com o aliciamento à compra do supérfluo. Alguém do ramo dizia-me que a sua especialidade era “vender o que as pessoas não precisam”.
O desenvolvimento industrial levou a um excesso de oferta e esta a uma massificação do consumo, alimentada pela comunicação que, através da coação psicológica realizada pela publicidade, veio desenvolver a cultura de massas, ao que foi chamado “industrialização do espírito” e a “colonização da alma”, atirando-nos rapidamente para uma típica sociedade de consumo em substituição da sociedade de subsistência.
Passou a consumir-se tudo o que está na moda apenas como forma de integração social, numa estratégia da indústria que, mais do que na produção de mercadorias, investiu no aumento da procura, isto é, em produzir consumidores.
Cada um de nós passou a ser “capital humano”, sendo promovido a trabalhador e a consumidor e, sem percebermos, procedemos como peças de uma máquina (a sociedade de consumo), cujo funcionamento não compreendemos. A partir de certa altura já não consumimos coisas, somente “marcas”, já não nos vendem produtos, vendem-nos “estilos de vida” de acordo com os “critérios do mercado”. Nesta sociedade, passamos a ser consumidores sem vontade própria, sujeitos ao prazer do consumo, escravos das estratégias do marketing agressivo e das facilidades de crédito das empresas e dos bancos.
Compramos o que precisávamos e o que não precisávamos, da roupa ao calçado, dos “palácios” às “bombas”, das viagens às prendas, das enciclopédias às colchas de linho a prestações. Até compramos os nossos filhos ao dar-lhes tudo o que pediam só para não nos chatearem porque não tínhamos tempo para lhes dar.
E nós compramos, compramos, compramos, embora para isso tivemos de correr mais, trabalhar mais, e pôr a mulher e até os filhos a correr também mais, para satisfazer “falsas necessidades” que o marketing foi inventando e reinventando, fazendo de nós escravos sem correntes.
Muitas vezes o meu amigo Agostinho me perguntava: – “Esta gente vai toda a correr para onde”? E nesse comprar, comprar, fomos enchendo a casa dos chamados bens, construímos anexos que também enchemos, e até ocupamos quintal ou jardim. E vem todo este rebobinar do nosso percurso comum porque cheguei à conclusão que teria muito melhor qualidade de vida se me desfizesse de 80% da tralha que tenho em casa.
Aliviado deste “excesso de peso”, teria a minha viagem mais simplificada, precisando de menos casa e menos anexos, em conclusão, viveria melhor. Olhando para trás, friamente, dou-me conta de que após a industrialização, fomos “formatados” para consumir. E ao massificar o consumo, perdemo-nos como indivíduos. E o que nos ficou deste consumismo?
Uma quantidade de bugigangas espalhadas por cima dos móveis ou, já por falta de espaço, encafuadas em vitrines ou em caixotes, que só são um estorvo. E pergunto-me: – Que é isto? Os móveis “despromovidos”, enfiados nos anexos à espera de “reabilitação”, os eletrodomésticos encostados, as taças, centros de mesa e arranjos, os armários a rebentar com roupas ociosas por não serem utilizadas, os sapatos, as maquinetas de cozinha que serviram enquanto foram novidade, as louças nunca usadas, as bicicletas e outras maquinetas para fazer exercício físico. Toldes e guarda sois, sacos camas e tendas de campismo, coleções de livros, de porcelanas e de sei lá o quê, berbequins e outros afins, ferramentas, bidões e floreiras, consolas e telemóveis em uso e desuso, etc., etc., etc..
Afinal, além de um típico “carneiro” do rebanho da sociedade de consumo, tornei-me também num “ACUMULADOR DE LIXO”.
O consumismo conduziu-me até aqui e ao olhar para trás, para aquele miúdo que só tinha dois pares de calças remendadas, penso que poderia viver várias décadas mais, sem precisar de comprar roupa, se aproveitasse a que tenho tão bem quanto devia. Mas a sociedade que criamos vive deste ciclo vicioso: As empresas fabricam produtos, empregando pessoas, a quem pagam salários, para lhe comprarem os produtos.
Conclusão: A empresa fabrica produtos e consumidores. Com a mecanização, a automatização e a robotização produziu-se mais e mais com menos mão de obra, em excesso, levando-nos a consumir mais e, consequentemente, a trazer mais lixo para casa, com a agravante de passarmos a ser dispensáveis, melhor, descartáveis, afinal, também lixo.