Em 2009 M. Manson largou o apartamento onde vivia e partiu numa viagem pelo mundo que o levaria a viver temporariamente em 55 países como nómada digital a alimentar o seu blogue. Nessa viagem, em 2011 viajou para São Petersburgo, na Rússia. Nas suas palavras, “a comida era péssima, o tempo era péssimo e o meu apartamento era péssimo. Nada funcionava. Era tudo caríssimo. As pessoas eram malcriadas e tinham um cheiro esquisito. Ninguém sorria e todos bebiam demasiado. E, contudo, adorei. Foi uma das minhas viagens favoritas”. Porque existe um sem cerimónia na cultura da região que, normalmente, desagrada aos ocidentais. Não há delicadezas falsas nem as tiradas verbais polidas, mas que não dizem nada. Não se sorri para estranhos nem se finge gostar de algo de que não se gosta. Porque ali, se uma coisa é estúpida as pessoas dizem que é estúpida. Se alguém está a ser cretino, dizem-lhe que está a ser cretino. Se gostam de uma pessoa e estão a passar um bom bocado com ela, dizem-lhe que gostam dela e que estão a passar um bom bocado. Não importa se a pessoa é um amigo, um estranho ou alguém que acabou de se conhecer cinco minutos antes na rua. Durante a primeira semana ficou desconfortável com esta realidade. Teve um encontro num café com uma rapariga russa e três minutos depois de estarem sentados juntos ela olhou-o cara a cara e, sem rodeios, disse-lhe que o que ele acabara de dizer era estúpido. Quase se engasgou com a bebida. Não falou de forma exaltada, mas disse-o, apenas, como um facto trivial fosse ele o estado do tempo no dia ou o número que calçava. Mas ele ficou chocado, pois essa franqueza no Ocidente era considerada muito ofensiva, especialmente vindo de alguém que acabamos de conhecer. Mas era assim com toda a gente. Todos lhe pareciam constantemente rudes e a sua mente ocidental mimada sentia-se atacada por todos os lados. Mas, à medida que as semanas passavam, habituou-se àquela franqueza clara, tal como se habituou aos pores do sol à meia-noite e à vodca que se bebia como água gelada. E depois começou a apreciá-la exatamente pelo que era: expressão não adulterada. Honestidade no verdadeiro sentido da palavra. Comunicação sem condições, sem segundas intenções, sem motivo ulterior, nada de conversa fiada de um qualquer vendedor ou com o desejo desesperado de querer ser apreciado. Diz ele que, após anos de viagem, foi provavelmente no lugar menos americano de todos os lugares, que experimentou pela primeira vez um gosto particular de liberdade: a capacidade de dizer tudo o que pensava e sentia, sem receio de repercussões, sem medo de ofender ou chocar a outra pessoa desde que fosse honesto e dissesse o que sentia e não o que era conveniente para lhe agradar. Sentiu uma estranha forma de libertação através da aceitação da rejeição. E, sendo alguém a quem faltava muito este gênero de expressão desempoeirada durante a maior parte da vida, embriagou-se nela como … bem, como se esta fosse a mais requintada vodca que já bebera. Quando chegou ao fim o mês que passou em São Petersburgo conforme programara, não queria ir embora. E nada do que sentiu tem a ver com o sistema político e muito menos com os governantes e criminosos de guerra de hoje, mas com o povo da região onde viveu. Viajar é uma excelente ferramenta de desenvolvimento pessoal pois retira-nos dos valores da nossa cultura e mostra-nos que, noutras sociedades, pode viver-se com valores completamente diferentes e, ainda assim, funcionar e não se odiar a si mesmas. Esta exposição a valores culturais e critérios diferentes força-nos então a reexaminar o que parece óbvio na nossa vida e a considerar que, talvez, este não seja afinal o melhor modo de viver. Neste caso, o povo desta região russa fez-lhe ver e reexaminar a comunicação de treta e a falsidade que são tão comuns na cultura ocidental e perguntar a si mesmo se esta não estaria, de certa forma, a tornar-nos mais inseguros em relação uns aos outros e a prejudicar a nossa intimidade. O seu professor de russo tinha uma teoria interessante sobre estas grandes diferenças entre as duas culturas: “Tendo vivido sob o comunismo durante tantas gerações, com poucas ou nenhumas oportunidades económicas e engaiolada numa cultura de medo em relação ao sistema governante, a sociedade desta região descobriu que a moeda mais importante era a confiança. E, para construir confiança, é preciso ser honesto. Isso significa que, quando as coisas são uma porcaria, isso é dito abertamente e sem desculpas. As demonstrações de honestidade desagradável eram compensadas pelo simples facto de serem necessárias para a sobrevivência – as pessoas tinham de saber em quem podiam e não podiam confiar e tinham de o saber depressa. Porém, no Ocidente “livre”, continuou o seu professor de russo, “existe uma abundância de oportunidades económicas, tantas que se tornou muito mais valioso uma pessoa apresentar-se de uma certa maneira, ainda que falsa, do que ser efetivamente dessa maneira. A confiança perdeu o seu valor. A aparência e a capacidade de venda tornaram-se formas de expressão mais vantajosas. Conhecer muitas pessoas superficialmente é mais benéfico do que conhecer poucas intimamente. Foi por isso que se tornou muito normal nas culturas ocidentais, sorrir e dizer coisas de cortesia, mesmo que não sentidas, dizer pequenas mentiras inocentes e concordar com alguém mesmo que não se concorde. É por isso que as pessoas aprendem a fingir que são amigas de outras de quem nem sequer gostam, a comprar coisas que, de facto, não querem. É o sistema económico que promove estas ilusões. A grande desvantagem é que, no Ocidente, nunca se sabe se é possível confiar completamente na pessoa com quem falamos. Por vezes, isto acontece mesmo entre bons amigos ou familiares. Existe uma tal pressão para se ser apreciado que, muitas vezes, as pessoas reconfiguram completamente a sua personalidade, dependendo de com quem estão a lidar e das intenções que têm”. Ainda há dias me dizia um amigo que a sua frontalidade em dizer as verdades a qualquer pessoa, sem meias palavras nem dourar a pílula, tem-lhe trazido bastantes dissabores porque há quem não as queira ouvir. Mas ele não gosta de fingir que está tudo bem quando não está, que gosta do que não gosta, que tem de elogiar o que não merece um elogio. Dizia-me ainda que “se finge muito, abraça-se e beija-se quem se detesta porque é conveniente e, logo de seguida, nas suas costas, se dizer o que realmente se pensa. Olhando para este confronto de atitudes culturais antagónicas e sem introduzir na equação a toxidade dos governantes, será caso para perguntar qual das duas deveríamos escolher: se a atitude franca e honesta do povo daquela região russa ou a atitude das sociedades ocidentais feita de delicadezas falsas onde é mais importante parecer que ser, com muita falsidade e hipocrisia que tantas vezes só deixa palavras de conveniência, não sinceras, que não correspondem aos sentimentos nem à prática de todos os dias …