Viver a vida com corpo e mente presentes?

As autoestradas vieram dar-nos muito mais segurança e rapidez nas deslocações, mas fizeram-nos igualmente abandonar antigas estradas nacionais e, com isso, esquecer terras, nalguns casos por completo, ao ceder ao conforto das novas vias. Um dia destes dei comigo a pensar que já não passava na estrada nacional 15 a caminho do Porto há um bom par de anos e nem me lembrava da última vez que atravessara Valongo. Por isso, fugi à tentação da rotina e rumei a Paredes pela estrada nacional, seguindo depois para Baltar e Valongo. Na verdade, mais valia ter ido pela autoestrada como de costume. Por muito que me custe dizer, tive consciência de atravessar Paredes e seguir pela nacional 15 em direção a Valongo e Porto, mas entrei no modo de “piloto automático” e, quando dei por mim, estava no Alto da Maia. 

Valongo ficara para trás sem que me tivesse apercebido. Mas, afinal, o que aconteceu?

Quando entrei pela primeira vez num automóvel para aprender a conduzir, agarrei-me ao volante com força, concentrado na “roda” e na forma de orientar o carro para onde queria, como se só houvesse aquilo no mundo. Estava completamente focado no que estava a fazer e não havia distrações. Com o tempo, a concentração na condução foi esmorecendo, as mãos aprenderam a segurar o volante de forma apropriada fazendo os ajustes sempre que necessário, mas de forma automática. Passei a conduzir o carro de um lado para o outro sem prestar atenção às mãos e, a partir de certa altura, sem que a minha atenção estivesse sempre concentrada na estrada. Isto acontece com toda a gente. Conseguimos conduzir e, ao mesmo tempo, comer, ouvir o rádio e sintonizá-lo, conversar, falar ao telefone e algumas coisas mais. Conduzimos em “piloto automático”. Já se deu conta disso? Não faz certas viagens em que não se apercebe ter passado localidades do percurso? Não se lembra se o semáforo estava verde ou vermelho, se o trânsito era intenso ou não? Enquanto o corpo conduzia o carro habilmente através do trânsito, a mente viajava de férias para algum lugar agradável ou foi estudando a forma de resolver um assunto que tinha pendente. E, quando acordou, chegou ao seu destino sem se dar conta. Isto é mau? Não tem de se culpar nem envergonhar, pois toda a gente o faz. E se conduz em “piloto automático há anos e nunca teve um acidente, é sinal de grande habilidade!

Pensando bem, o “modo automático” como conduzimos, também é usado para comer, tomar banho e fazer toda a higiene pessoal, vestir roupa e calçar, correr, etc. Enquanto o corpo executa todas essas tarefas, a mente viaja para outras paragens ou vai a trabalhar noutra coisa. E não é descabido afirmar que até nas relações pessoais com a família também acontece. Quer isso dizer que, em todas as situações, não estamos completamente presentes, de corpo e mente. Ou seja, não usufruímos em pleno do que acontece.

Quando nessas ocasiões a nossa cabeça não está no presente, a nossa mente tem tendência a ir para um destes lugares: o passado, o futuro ou o reino da fantasia. E tais lugares não existem fora da imaginação. O único lugar que existe é o “aqui” e o momento em que realmente estamos vivos é o “agora”.

Ora, quando a mente nos foge do presente para ir recordar o passado, não tem mal nenhum pois a capacidade de se lembrar do passado é um dom. Ajuda-nos a aprender com os erros cometidos e a alterar o rumo da vida quando não está a ir bem. Mas muitas vezes a mente ao voltar-se para o passado é para nos mortificar pelos erros cometidos: “As coisas correram mal porque eu disse o que não devia” ou “paguei antes de me fazerem o serviço e fiquei pendurado” … Infelizmente, a mente traz à tona os erros do passado, repetidamente, muitas vezes para nos criticar ou culpar sem parar e nós deixamos que continue a trazê-los de volta vezes sem conta para sofrermos a mesma angústia e vergonha. E, se não se puxa 100 ou 200 vezes as orelhas a ninguém por um erro, porque temos de ser sempre massacrados por ela?

Quando a mente nos foge para o futuro, nada de mal. A capacidade da mente humana para planear o futuro é outro dom incomparável. Com isso ela dá-nos os meios para nos orientarmos no caminho a seguir, diminuindo a probabilidade de ir pelo caminho errado e perdermos tempo no desvio, aumentando as hipóteses de atingirmos os nossos objetivos. Infelizmente, na sua ansiedade, a mente procura planear um número muito grande de futuros a maioria dos quais nunca vai acontecer e essa fuga constante para o futuro é um desperdício de energia mental e emocional. Assim, o melhor jeito de preparar o futuro desconhecido é fazer um plano razoável e focar-nos no que está a acontecer aqui e agora, com a mente clara e coração aberto para modificar o plano conforme a realidade do momento que passa.

A mente também gosta de nos levar para o reino da fantasia, criando filmes dentro de nós, protagonizados por um novo “eu”, diferente, famoso, bonito, poderoso, talentoso, bem-sucedido, rico e amado. A capacidade de fantasiar é admirável, estando na base de toda a nossa criatividade. Isso permite-nos imaginar novas invenções, criar arte e música, elaborar outras teorias científicas e fazer planos para tudo, desde novos edifícios a novos capítulos da nossa vida. Até já criamos as armas e tecnologias adequadas para derrotar a Rússia e eliminar esse criminoso que dá pelo nome de Putin.

 Infelizmente, isso pode só ser um escape, uma fuga à realidade e a tudo que é desconfortável no momento presente. Fuga da ansiedade por não saber o que vem aí, fuga do medo de que o momento seguinte (ou a hora, ou o dia, ou o ano) nos possa trazer dificuldades, doenças ou coisa pior.

Enfim, quando deixamos a mente descansar no presente, plena do que acontece aqui e agora, evitando idas repetidas e infrutíferas ao passado, ao futuro ou à fantasia, estamos a conservar a sua energia, para permanecer fresca e aberta, pronta para responder a tudo o que se exigir dela, pois normalmente a mente não descansa, ficando ativa mesmo à noite durante o sono, gerando os sonhos que misturam ansiedades com acontecimentos da nossa vida. E, tal como o corpo, a mente precisa de repouso, mas só consegue fazê-lo quando está no presente, em descanso, relaxada do fluxo de tudo o que acontece.

Tudo isto para dizer que passamos muito tempo da nossa vida sem estarmos conscientes do que está a acontecer e do que nos rodeia no momento. Olhamos e não vemos as flores dos arbustos no separador da autoestrada. Mas elas estão lá. E não vemos os melros a brincar no jardim apesar dos nossos olhos os mirarem sem que a mente os veja. Nem sequer vemos um dia bonito de sol. Como brincamos com as crianças sem estar verdadeiramente lá com elas, sem registar as suas gargalhadas de alegria. Precisamos de recuperar o grande segredo da infância, de “estar sempre presente”, de corpo e mente. Ou já não seremos capazes? Afinal, como será viver a vida tendo o corpo e a mente concentrados no presente?

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