A pandemia e a Guerra da Ucrânia vieram alterar profundamente as nossas vidas, especialmente no que à economia familiar diz respeito, com a inflação a atingir valores que já havíamos esquecido há muito. E, nesse processo inflacionário atribuído às quebras na produção de bens e à falta de matérias-primas, sabe-se que a especulação também deu uma grande ajuda para que os preços chegassem tão alto, pois o oportunismo comercial não deixou de se intrometer para retirar mais alguns ganhos do que seriam devidos. E fomos sabendo, aqui e ali, da maneira como existências de artigos e produtos em armazém foram dadas como inexistentes para, de um dia para o outro, aparecerem no mercado com preços abusivamente superiores.
Nestes casos, foi a ganância e a obsessão de ganhar muito e depressa quem comandou a decisão desses oportunistas, que se esqueceram do respeito pelas regras do jogo e da confiança que tem de existir entre fornecedores e consumidores para que na sociedade não impere a lei da selva. É verdade, toda a atividade comercial tem como principal objetivo a criação de uma mais-valia a que vulgarmente chamamos lucro.
E eu, que tenho trabalhado na compra e venda de imobiliário, não escapei a essa regra pois ao comprar um património qualquer para revender tive como objetivo fazê-lo com algum ganho, o que nem sempre terá acontecido, mas isso são as exceções à regra. Por norma, todo o lucro reverte para o vendedor deduzido de eventual comissão a pagar a alguma mediadora imobiliária, se for caso disso e, posteriormente, dos devidos impostos. Ora, o que me leva hoje a escrever estas linhas é um caso raro que sai fora do habitual no que ao lucro diz respeito. E passo a contar:
O senhor António chamou o filho mais novo com quem costumava conversar mais sobre os seus negócios e disse-lhe: “Conheces bem aquela propriedade que comprei à família Teixeira por duzentos mil euros. Quando fiz o negócio nem sequer discuti o preço e paguei-lhes o valor que me pediram. Pois acabei de a vender a uma empresa do centro do país por quinhentos e cinquenta mil euros e já assinamos o contrato promessa de compra e venda”. O filho ficou entusiasmado, felicitou o pai por ter feito um negócio excelente que lhe tinha gerado uma mais-valia superior a 150% e, mais ainda, porque a propriedade fora comprada há pouco mais de dois meses, pelo que era uma mais-valia extraordinária num prazo de tempo bem curto. Depois do filho acalmar um pouco, o pai continuou: “No entanto quero-te informar também que vou devolver há família Teixeira uma parte desse lucro, porque considero que aquilo que eu ganhei neste negócio é excessivo e não seria justo que ficasse com a mais-valia toda em desfavor do anterior proprietário que, por uma razão ou por outra, não soube vender a propriedade pelo seu valor real. Já lhes comuniquei a minha decisão”. O filho “passou-se dos carretos” e disse ao pai que não tinha nada que partilhar o lucro com os Teixeiras dado que o trabalho e habilidade comercial fora somente dele e não deles. E, em tom muito enervado, usou todos os argumentos possíveis para tentar demover o pai de fazer aquilo que ele considerava ser uma grande asneira que não fazia sentido. Mas, apesar da insistência e discordância do filho, o senhor António manteve a decisão como uma “questão de princípio” até porque, disse-lhe ele, “o dinheiro não é tudo na vida”. A história, verídica, foi-me relatada há dias pelo filho do senhor António, aquele que se opôs ao “esbanjamento”. E hoje, vários anos volvidos, o filho disse-me muito comovido: “Esta foi a maior e melhor lição de vida que recebi do meu pai, numa altura em que a minha juventude não me deixava ver para além do dinheiro que eu achava que ele estava a desperdiçar. Só o tempo me fez perceber a grandeza da sua atitude”. Disse ainda que a família Teixeira nem queria acreditar que alguém tivesse um gesto desses e se, antes o respeitavam, a partir de então passaram a ter por ele uma adoração enorme, diria mesmo devoção, que os levou a consultá-lo sempre que queriam vender alguma coisa por saberem ser alguém de confiança que não pensava só em si.
Confesso que, para mim, este é um caso único. Nunca conheci nem ouvi falar de alguém que, sem compromisso algum com o anterior proprietário, voluntariamente se dispôs a dividir com ele os lucros colhidos na transação da propriedade que ele lhe vendera sem nada a obrigá-lo ao que quer que seja, mas somente por considerar que teve “ganhos excessivos” e que, por isso, moralmente se sentia obrigado a fazê-lo. É uma atitude duma nobreza invulgar de que muito poucos se podem gabar e o cidadão comum, ao saber que ele entregou parte do lucro a troco de nada e “à nossa maneira”, pensará: “Grande estúpido. Eu não lhe daria um “chavo””.
Mas António revelou uma preocupação que vai para lá do benefício financeiro, demonstrando uma consciência social e ética rara, já que não é normal vermos alguém abdicar de uma boa fatia de dinheiro a troco de nada, a não ser da sua convicção de que era uma obrigação.
Mais do que tudo, a lição de António deve servir para meditarmos se “o dinheiro é tudo na vida” ou se há outros valores que, em muitos momentos, devem estar acima do “vil metal”.
A rematar a conversa que tive com o filho do senhor António, ele disse-me que, a partir deste acontecimento e ao longo da sua vida, teve a felicidade de confirmar uma velha “máxima” que se ajusta perfeitamente ao que lhes foi acontecendo ao longo dos anos: “Na vida, quanto mais damos, mais recebemos”.