Os portugueses julgam ter uma capacidade especial para resolver qualquer problema encravado, seja ele de que espécie for. Aliás, até pensamos que somos os campeões mundiais nessa nobre arte a que demos o nome artístico de “desenrascanso”. Assim, a capacidade de resolver um sarilho do pé para a mão, com uma perna às costas, em curto espaço de tempo e sem grandes meios, é um feito que, aos olhos dos portugueses, merece ser exaltado, ainda que o caso tenha sido resolvido em cima do joelho. Verdade seja dita, ainda está por demonstrar se essa suposta virtude não se trata mais de um defeito, quase sempre mal-escondido. É pena que Luís de Camões não esteja vivo para cantar em verso essa suposta qualidade dos lusitanos, mas pode ser que algum poeta do nosso tempo agarre no assunto e eleve bem alto tal “arte” nacional, que revela uma luta entre a inteligência e a esperteza. Porém, não sabemos se essa capacidade é genuinamente portuguesa, mas quem vive cá entre nós tem de reconhecer que a improvisação muitas vezes é a única forma de lidar com o que nos acontece. E, como o“desenrascanso” implica algo feito à pressa, pode dizer-se que nunca se sabe se a solução encontrada não vai acabar por gerar um problema maior. Ora a verdade é que, no momento do desenrasque, quando o “artista” proclama a palavra mágica “pronto”, pode gabar-se do seu feito, de ter resolvido o problema encravado, possivelmente há muito tempo, ainda que depois a coisa dê para o torto, algo vulgar quando ele “percebe pouco ou nada da poda”. Mas, como diz o povo, “enquanto o pau vai e vem, folgam as costas” e ele pode usufruir do sucesso, mesmo que seja temporário.
Desenrascar algo é conseguir o impossível. É encontrar uma solução como agulha num palheiro. É apelar à criatividade e safar-se contra todas as espectativas. É encontrar uma chave, sabe-se lá como nem onde. É sair do canto onde ninguém dá por si, dar o braço à Fortuna, virar o jogo e resolver o problema numa jogada impensável. É por não saber muito bem o que fazer que agimos de forma imprevista e conseguimos uma vantagem momentânea que pode ser explorada a nosso favor. O resto é sentido de oportunidade. Ou oportunismo, conforme o caso. Por exemplo, uma das características distintivas da gestão em Portugal parece ser o desenrasque. Um estudo feito com gestores portugueses e expatriados em Portugal assim o indicava, traduzindo de resto uma intuição corrente.
Os portugueses parecem ser mestres na arte do desenrasque e, aparentemente, demonstram algum orgulho nisso. Aliás, não sei se é mais uma “arma” do que uma “arte”, tal a oportunidade de um “tiro certeiro”.
Podíamos, como outros fazem, tentar mudar a situação, educar os incompetentes, punir os prevaricadores, pedir responsabilidades, criar padrões de conduta e processos claros de recompensa, mas aprendemos com o tempo que nada disso vale para a nossa maneira de ser.
Que a estratégia, o planeamento e a capacidade de execução, combinados com mecanismos de avaliação e metodologias para a melhoria contínua são insubstituíveis. Mas, quando estas falham, o desenrascanço pode ser solução extrema, reservado para situações limite onde se torna então indispensável. O desenrascanço baseado em soluções de recurso tem o seu âmbito de aplicação. É importante quando o planeamento falha e a situação ameaça descontrolar-se. Mas, gerir pessoas, empresas, projetos e tarefas somente com base no desenrascanço, é um pouco como não arranjar os travões do carro porque ele tem airbag.
Pela Lei de Murphy, “se alguma coisa pode correr mal, vai mesmo correr mal”. Ora, diz-se que isto não tem aplicação em Portugal pois há sempre a possibilidade do “desenrascanço” para sair de situação difícil e, “entre mortos e feridos, alguém há de escapar”. Além disso, sabe-se que uma boa crise traz sempre oportunidades a quem tiver esta capacidade ou habilidade.
O horror ao desenrasque é muitíssimo maior junto dos profissionais oriundos de países com práticas de gestão mais desenvolvidas ao longo de décadas, de gestão moderna do Norte da Europa e não na que se difundiu no Sul da Europa, onde ainda persiste. Nos países do Norte, os planos são tomados a sério, pois as regras são universais e os desvios devem ser excecionais. Já cá no Sul, os planos terminam muitas vezes com a apresentação em “power point”, mas as regras admitem um sem número de exceções e o seguimento do plano é a exceção e não a regra. A planificação e, muito mais, o cumprimento das regras, não são connosco. Está mais que provado que, administrativamente, quando um projeto esbarra na burocracia, na cunha, no compadrio, na incompetência generalizada, na incapacidade de tomar decisões rápidas e assumir a sua responsabilidade, na falta de visão, na inveja e falta de liderança, o azar e o mau-olhado paralisam-nos e só nos resta mesmo apelar ao desenrascanço porque, o especialista no desenrasque, é alguém que sabe bem “mexer os cordelinhos” e como “olear a máquina”, além de conhecer “a porta onde há de bater”. E não adianta ficarmos a remoer por o nosso processo estar parado, não ser despachado nem sequer informado. O típico português sabe bem como arranjar maneira da coisa ser desenrascada e onde encontrar um “artista com arte”, ainda que isso tenha um preço que para um cidadão nórdico seria, de todo, inconcebível. Na realidade, nós temos orgulho na nossa capacidade de resolver as situações imprevistas ou enrascadas, usando soluções nem sempre confiáveis ou “ortodoxas”. Daí que, no rol das anedotas europeias conta-se esta: “A fábrica ideal na Europa teria gestores holandeses e operários alemães. Mas, no centro da fábrica e dentro de uma redoma de vidro, estaria um português. No vidro haveria um autocolante com o aviso: “Em caso de emergência e necessidade de desenrasque, deve quebrar o vidro”.