Zé do Telhado: (A)final, um homem bom?

Há um bom par de anos andei por terras de Angola durante alguns meses, tendo passado uma boa parte desse tempo em Malange. E a partir dali fazia incursões pela Baixa de Cassange para me dedicar ao estudo da cultura do algodão. Foi nessa região que me “cruzei” com o passado de um homem oriundo das nossas terras, onde se tornou figura mítica e ficou conhecido por Zé do Telhado. Depois de ter sido deportado para Angola na sequência de uma sentença do tribunal do Marco de Canaveses, estabeleceu-se em Malange como negociante de borracha, cera e marfim, sendo conhecido entre os angolanos como o “Kimuezo”, ou seja, o homem de barbas grandes, já que as deixara crescer desde que chegara a África. Viria a morrer em 1875 com 57 anos e uma enorme fama de homem bom, figura mítica e protetora dos mais desfavorecidos, de tal forma que ainda hoje, quase 150 anos após a sua morte, são feitas romagens à sua campa, um pequeno “mausoléu” erigido pelos naturais da longínqua aldeia de Xissa, onde morreu. 

Em 65 estive várias vezes diante do “mausoléu” e é impressionante como, passados que eram noventa anos sobre a sua morte, a sua fama de homem bom, de protetor dos mais necessitados e figura mítica, continuava viva no coração daquela gente de Angola, nessa terra onde acabou os seus dias. Ouvi-o de viva-voz da boca de alguns residentes da “sanzala”. E tanto o cuidado posto na conservação do mausoléu como o seu nome atribuído à escola local eram testemunho desse respeito e gratidão que a população local continuava a dedicar-lhe.

Zé do Telhado fora deportado para Angola, condenado pelos crimes que lhe foram imputados enquanto chefe duma quadrilha de ladrões, se bem que na mente (e talvez no coração) de uma grande parte das gentes da sua época, tenha permanecido como o “Robin dos Bosques português”, alguém que, à sua maneira e em época muito conturbada da História de Portugal, combateu as injustiças sociais e de quem, a senhora da Casa de Carrapatelo, onde levou a efeito um dos maiores assaltos, o que a torna insuspeita na sua afirmação, disse em tribunal: “Existem pessoas de bem que nunca deram às classes humildes um centésimo do que Zé do Telhado lhes deu”. 

Confesso que tenho uma atração muito grande por essa figura local, misto de bandido e benfeitor que ficou conhecida por Zé do Telhado, de que ainda ouvi falar muito na minha infância com admiração, até porque assaltou ou tentou assaltar algumas casas bem conhecidas na região. E ficou-me a curiosidade, porque não o respeito por alguém de quem ouvi muitas histórias, umas reais e outras de ficção, que o transformaram num herói aos olhos de uma criança e num mito para a sociedade.                                                                                                Aprendeu e trabalhou como capador e tratador de animais, tornou-se militar nos “Lanceiros da Rainha” em Lisboa, onde se distinguiu pela sua conduta e coragem, levando-o a tomar parte na luta pelos liberais contra os setembristas. Derrotado, fugiria para Espanha, regressando para aderir à Revolução da Maria da Fonte às ordens do general Sá da Bandeira. Nessa luta foi notável pela sua bravura, pelo que recebeu a mais alta condecoração de Portugal. 

Com a derrota da revolução, caiu em desgraça e foi expulso do exército, tendo regressado a casa pobre e marginalizado pelos vencedores, sem direito a um trabalho que lhe permitisse sustentar a família, sendo presa fácil para quem o tentava levar ao caminho dos assaltos como única saída para poder alimentar os filhos que lhe pediam pão. Foi sempre um homem com dignidade, não virando nunca a cara à luta, fosse como combatente ao serviço do reino e das causas que defendeu, quer fosse nos assaltos ou disputas nas feiras e romarias.

Como assaltante foi corajoso e cavalheiro, impondo alguns códigos de conduta ao bando com o respeito pelos mais fracos e pelas mulheres. Só roubava os ricos e fazia questão de distribuir parte do produto dos roubos pelos pobres. A benemerência do salteador ofendeu mais os poderes de então do que propriamente os roubos que fez e talvez por isso tenha sido perseguido sem tréguas. E a denúncia das injustiças sociais fizeram com que fosse tão louvado pelos pobres (e até pelos ricos), mas, sobretudo, um incómodo para o poder. 

Zé do Telhado teve assim três fases distintas na sua vida. A primeira, como capador de animais, homem casado e militar condecorado pela sua disciplina e coragem. A segunda, como chefe de uma quadrilha de ladrões, comprovadamente empurrado pelas circunstâncias de se ter colocado às ordens do General Sá da Bandeira, aderindo à Revolução da Maria da Fonte e saído derrotado, pobre e sem hipótese de algum trabalho. E a terceira, já em Angola, como negociante e homem bom que protegia os mais desfavorecidos ao ponto de se tornar uma lenda que continua viva um século e meio depois. 

Se Zé do Telhado pudesse voltar cá, sentir-se-ia injustiçado ao saber que um assaltante e ladrão de banco fora nomeado para secretário de estado e que muitos outros governantes de honestidade e ética muito duvidosa não deixaram de o ser por isso. E perante o panorama geral do que vem acontecendo, ele invocaria a poesia de António Aleixo e assumia como sua essa quadra extraordinária:

“Sei que pareço um ladrão …

Mas há muitos que eu conheço

Que não parecendo o que são

São aquilo que eu pareço”!!!

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