Uma “telenovela” fileira em horário nobre …

Sou do tempo em que não havia televisão, muito menos telenovelas. A única coisa parecida com isso eram as radionovelas, tendo-me ficado na memória a primeira chamada de “Simplesmente, Maria”, que fazia com que as mulheres (e alguns homens) ficassem coladas ao rádio, de lágrima no olho. Já as telenovelas chegaram a Portugal pela mão dos brasileiros com “Gabriela, cravo e canela”, de Jorge Amado. Novidade em Portugal. O país parava para não perder pitada de um enredo bem conseguido e assistir ao desempenho de atores brilhantes na pele de personagens como Nacib, Tonico Bastos, Mundinho, o temido coronel Ramiro Bastos e a dona do Bataclan, Maria Machadão. Seguiram-se outras com desempenhos fabulosos como no Roque Santeiro com as personagens Sinhozinho Malta e Viúva Purcina e na Tieta do Agreste, mas mais nenhuma atingiu as audiências da primeira.                                As novelas instalaram-se nas televisões portuguesas, inicialmente as brasileiras e depois as portuguesas, tendo estas começado com Vila Faia. E vieram para ficar. Os especialistas nesta matéria dizem que há um conjunto de ingredientes para que tenham sucesso: Na base, uma boa história de amor, uma vilania bem desenhada e o retrato da nossa sociedade em geral com traições, mentiras, jogos de interesse e poder, dinheiro e todo o tipo de sentimentos, até os menos dignos. O mais importante é surpreender, provocar choque, jogar com o inesperado em reviravolta da ação. A verdade é que os produtores nacionais de telenovelas aprenderam depressa com o modelo importado do Brasil e realizaram excelentes trabalhos, com audiências a ultrapassar as suas congéneres importadas, se bem que manifestamente inferiores a esse tempo do “Gabriela, cravo e canela”. No entanto, este género de produção tem mantido uma clientela fiel entre nós, que não resiste a assistir diariamente aos avanços e recuos de uma boa história.                              Ora, nos últimos tempos, as telenovelas ganharam um concorrente de peso em Portugal, que tem mantido os muitos espectadores atentos ao desenrolar da “teia de acontecimentos” que se vão sucedendo a um ritmo alucinante e surpreendente, fazendo lembrar o que acontecia por cá só para ver uma Gabriela despudorada ou um Tonico Bastos a pentear o seu fino bigode. Trata-se de uma espécie de romance misto de policial e político, nada mais que uma verdadeira telenovela da vida real com “um elenco de peso” a desempenhar o papel de algumas personagens importantes da vida nacional, onde não tem faltado enredo quanto baste, mentiras, traições, acusações, o uso e abuso do poder, tráfico de influências, jogos de bastidores, péssima gestão da coisa pública, num espetáculo de incompetência e com revelações extraordinárias pelo absurdo, com roubos que, se calhar, não o foram, onde nem faltaram agressões físicas e verbais com intervenção da PSP e Polícia Judiciária, para além da ação excecional do SIS, as “secretas” portuguesas. Ora, o ritmo é tal, que os espectadores todos os dias se devem perguntar: “O que raio se vai ficar a saber mais hoje”? E tudo é importante para aumentar as audiências, dia após dia. E espera-se de cada audição “novas revelações”, para manter a emoção.                                                                                                  Tudo começou quando alguém “pôs a boca no trombone” ao saber que uma tal Alexandra Reis, nomeada para secretária de estado do Tesouro, “papara” meio milhão de euros por ser despedida da TAP, tendo logo de seguida sido “encaixada” na gestão de outra empresa pública. Daí a saber-se que fora uma ilegalidade, que ela até se tentara despedir antes sem indemnização, que o ministro começou por dizer que não sabia de nada tendo até sacrificado um secretário de estado, para depois confessar que, afinal, sabia de tudo e até aprovara o valor da indemnização. E caiu o ministro. Mas, diz-se: “rei morto, rei posto”. Saiu um e entrou outro da mesma fornada, com os mesmos tiques. Na comissão de inquérito a CEO francesa da TAP disse ter participado em reunião antes com um grupo parlamentar para “acertar” as perguntas e respostas nessa comissão, em mais um jogo para tornear a verdade. E a CEO e o presidente do conselho de administração foram postos no “olho da rua”, sem se avaliar previamente se havia ou não razões para tal, como “bodes expiatórios” para acalmar ânimos e abriu-se a porta a novas indemnizações que vão ser pagas pelo “Zé” do costume. Como as surpresas nesta “telenovela da vida real” não paravam, soube-se que no ministério do novo ministro houve cenas próprias de um filme policial barato, com gritos, fecho das portas, sequestro, roubo ou não, pancadaria, chamada das forças de segurança com recurso a outros ministros e até envolvimento do SIS, as secretas de que ninguém fala, mas que aqui toda a gente falou. E na comissão de inquérito alguns dos intervenientes mais mediáticos disseram “a sua verdade”, muito bem ensaiada, para o espetáculo televisivo continuar a ter grandes audiências. Como numa telenovela, alguns “atores” fizeram questão de “representar” um determinado papel, sem grande preocupação pela verdade nem pelos interesses do país, com acusações muito bem ensaiadas. Enfim, estamos na presença de uma verdadeira “telenovela mexicana” de muito baixa qualidade, num local onde nunca deveriam ocorrer cenas tão tristes, colocando a instituição pública ao nível de um tasco ou de uma boîte foleira.                                                                      Presumo que o espectador comum ao assistir a este triste espetáculo fique dividido em função da sua sintonia ou não com o “artista” que conta a sua versão da “história”, perante este rol de amor e ódio, de fidelidade e traições, de falsas verdades e mentiras, da ética ou mais propriamente da falta dela, tal como da ausência total do “sentido de estado” que deveria ser o apanágio principal de quem nos governa.  Como “telenovela” foleira em horário nobre tem todos os ingredientes para ter um grande sucesso e as televisões devem estar a deliciar-se com todo este “material” que lhe é fornecido pelos intervenientes e que tem dado para horas e horas de emissão, “à borla”.                                                                                   E tudo o que se ouviu neste folhetim seria motivo para nos divertir se o que está em causa não afetasse a vida de todos nós. Ficou exposto o amadorismo duma governação, a fragilidade das estruturas do poder tomadas de assalto pela “rapaziada das jotas”, a displicência com que se consome o dinheiro dos nossos impostos em intervenções como é o caso da TAP onde já se enterraram mais de 4 mil milhões, sem que haja consequências para quem tomou a decisão de derreter todo este dinheiro. Uma ponta do iceberg que nos pode afundar a todos? E para quem olha o que este triste espetáculo significa, fica incrédulo ao ver uma casa a arder, pois está em causa o bom funcionamento das instituições. Como dizia António Capinha no Diário de Notícias, “Há lodo no cais. Alguém vai ter de limpar toda essa porcaria! E depressa”.                                            

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