O prazer em dançar de “rosto colado”

A minha memória faz-me regressar à adolescência e relembrar os bailes, fossem eles particulares como em casa da D. Palmira Meireles, na Vila, do senhor Leão, em Roriz e em mais umas quantas casas, ou os bailes institucionais, quer na Assembleia Lousadense e outras da região, quer no Clube Fenianos Portuenses e outros salões da época, em Bailes de Finalistas, de Fim de Ano, Carnaval e outros mais. E não esqueço do quanto eram desejados por todos nós!!! Traziam sempre algumas coisas boas: raparigas para dançar, pois eram relativamente poucas as que tinham liberdade (condicionada) para tal, para além de comes e bebes, que eram obrigatórios nos bailes particulares e uma oportunidade rara para “tirar a barriga de misérias” pois, apesar da carência de alimentos ser geral, o “copo de água” era sempre muito bem servido, normalmente feito com base em “multas” atribuídas a todas as participantes, fazendo com que cada uma levasse um bolo ou qualquer outra coisa para comer. Os rapazes tinham como obrigação comer e, às vezes, pagar alguns custos adicionais.

Quanto às moças, tendo em conta da quase impossibilidade de ficar a menos de meio metro de alguma no dia a dia, só o facto de a ter nos braços, a dançar, já era por si só um entusiasmo, quanto mais a partir do momento em que o seu braço esquerdo parava de funcionar como “travão” e nós víamos e sentíamos a sua aproximação, até os corpos se tocarem. Só quem viveu isso, que hoje será tido por ridículo, pode saber o valor que tinha para um jovem adolescente. Quando o baile era institucional, em grandes salões com mesas a toda a volta onde se sentavam não só as jovens, mas também os pais, especialmente as mães casamenteiras a exercer o papel de “polícia”, era intimidante ir perguntar a uma moça se dançava, sentindo o olhar observador da mãe, quando não crítico ou de censura. Mas pior ficava se a jovem, por vontade própria ou a um sinal da mãe, dava uma “nega”, diante de uma plateia que parecia ter os olhares fixados em nós. Na minha timidez, acabava por ficar vermelho como um pimentão. Tal como o quanto constrangedor se podia tornar, depois de dançar uma música romântica, lenta e sem que o “travão” da distância funcionasse, com os “rostos colados” e os corpos suados, ter de disfarçar a “dilatação” inapropriada nas calças, que podia fazer a mãe da rapariga corar de vergonha, raiva ou satisfação. Para um tímido, era como ficar nu no meio do salão …  

Sobre esses momentos, transcrevo um texto interessante de Rogério Mendellsk que traduz bem o valor da sua vivência:

“Rosto colado” é coisa que os jovens de hoje não conhecem como os preliminares de um ato de sedução. Em nossos bailes de antigamente (que palavra dolorosa!) os jovens percorriam o salão com o olhar em busca da rapariga ideal para começar um romance. Caso ela estivesse à mesa com os pais, nossas pernas tremiam. Uma bebida talvez fosse o combustível para encorajar o ato de atravessar o salão, chegar até à mesa dela e fazer o convite formal: “A menina dança”? E o “sim” dela poderia significar que também ela queria dançar, pois os olhos já se tinham cruzado por um momento no baile. Mas também poderia ser apenas o “sim” formal para não dar uma “nega” na audácia do rapaz. Se fosse este o caso, a regra que a jovem aprendera em casa com a mãe casamenteira era dançar, no máximo três, para não significar que havia outro interesse a não ser o da boa educação. No entanto, se “pintasse”, ai Jesus, a dança prolongava-se por todo o baile e, na hora exata, os rostos colavam-se e a sedução começava com uma conversa no ouvido. O ato de seduzir transformava-se numa velha enciclopédia romântica onde até valiam mentiras ingénuas.

Agora, não há mais “rostos colados”, não há mais bailes, os conjuntos melódicos são apenas boas lembranças e os clubes fecharam os seus salões para os jovens. O beijo roubado quando as luzes diminuíam de intensidade, era, talvez, o único da noite. Hoje as garotas apostam em quem beija mais rapazes numa noite. Esse sublime ato da conquista tornou-se algo vulgarizado. Uma festa “rave” ou um “baile funk”, mais do que uma reunião de jovens, é banquete de traficantes em busca de novos “patos” para início de uma vida de vícios. 

A sedução transformou-se em agressão sexual, para ambos os lados. Sem cocaína, sem pó, não há sequer essa aproximação de pessoas de sexo diferente, com “rostos colados”, nem mesmo que o DJ aposte em algo lento para descansar os dedos. Não se dança mais, os requebros e os pulos substituem os passos cadenciados. O barulho da “batida” acabou com o diálogo. E, sem diálogo, não há sedução. 

Está bem, somos velhos quando falamos de “rostos colados”. Mas ninguém pode roubar da nossa memória um tempo mágico onde o cavalheirismo de uma dança fazia as donzelas flutuar pelo salão com pessoas especiais. E quem nunca dançou uma vez na vida de “rosto colado”, não sabe o que perdeu”.

Dançar de “rosto colado” ao som de um conjunto musical de um disco de vinil ou de um gravador de fita, de som estéreo, era das melhores e mais gostosas sensações que se tinha, ainda mais quando o parceiro (parceira) era uma pessoa especial. Até parece que naquele instante o tempo não existia. Era o melhor momento para meter conversa. Para nós rapazes, dava para lhe cantar ao ouvido a música que rolava no gira-discos e se ela sorrisse, era sinal de que gostava e tudo ia bem. Caso não gostasse daquelas intimidades, fechava a cara sisuda e nós tratávamos de “ir cantar para outra freguesia”. Tudo era fator determinante para ajudar as mulheres a escolher o homem da sua vida, tanto pela maneira de pegar nela, de conduzi-la em segurança e leveza, se ele cometia erros, e se pisasse o pé da moça como é que se desculparia, se é que se desculpava. Tudo contava para ela. E quando terminava a música, quase tudo ficava por dizer, talvez por inibição ou até porque o tempo passava muito depressa. Mas dançar de “rosto colado” nos dias de hoje, tornou-se saudosismo, coisa dos pais e avós, de quem já dobrou meio século. Mas foi gente que viveu o desafio da conquista, o prazer da sedução de forma ingénua, para quem o “calor humano” tinha significado, mas também mais gostosa e marcante que deixaram memórias afetivas muito diferente do prazer instantâneo, do engate onde o rapaz ou moça nem se lembra mais de quem foi que engatou quem naquela noite.

Falar em “rostos colados”, é lembrar lugares onde não se pode voltar, de pessoas com quem se partilhou o “caminho” e momentos de pura e ingénua felicidade. 

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