Ora agora que eu tinha tomado a decisão de ir assistir ao primeiro jogo de Portugal contra no Qatar a contar para o Campeonato do Mundo de Futebol, contra o Gana, quando já mandara fazer reserva da viagem de avião, além de me sujeitar a ter de dormir num hotel de Mascate, em Omã, por falta de capacidade hoteleira no Qatar, é que “soube” não ser país recomendável e ninguém de um país “civilizado” como o nosso deve viajar para lá, muito menos para assistir a jogos de futebol em estádios construídos com mão de obra de migrantes, especialmente asiáticos e africanos, a trabalhar em condições sub-humanas. Como é que só soube isto a tão poucos dias do embarque? Claro que, mal me inteirei do que os “catarianos” fizeram, fui logo a correr à agência de viagens e desisti das reservas que fizera para ver se ia a tempo de não pagar nada da viagem e hotel, caso contrário ia ter de me ver e desejar para reaver o meu rico dinheirinho como já me aconteceu num passado recente. E ainda bem que a imprensa e os nossos políticos estavam bem atentos e descobriram a tempo estas coisas …
Se eu andasse neste mundo a “ver passar os comboios” até me podia ter acontecido algo parecido com isto que escrevi, mas não é o caso. A verdade é que, logo que em 2 de Dezembro de 2012 se soube que a Rússia organizava o Campeonato do Mundo de Futebol em 2018 e o Qatar em 2022, algumas vozes denunciaram a eventualidade de ter havido corrupção para o Qatar ter conseguido algo de impensável, dado ser um pequeno país, sem peso no mundo do futebol e onde os direitos humanos são letra morta. E nessa altura não se viu nenhum movimento sério para contrariar tal decisão e muito menos se falou nem contestou a Rússia que iria organizar a edição de 2018. Ora, que se saiba e sabia já nesse tempo, a Rússia não é nenhum país modelo no que toca a direitos humanos, o que veio a ser comprovado muito recentemente com os crimes cometidos na Ucrânia. Mas, o Qatar e a Rússia não mudaram (aliás, esta mudou para muito pior) e não se viu ninguém com responsabilidades a promover campanha de rejeição à participação tanto num país como no outro, como se isso fosse uma forma de validar o regime ou qualquer política de discriminação.
Já se sabia então que nos tribunais do Qatar o testemunho de uma mulher vale metade do de um homem ou nem sequer o aceitam. Que nesse país a poligamia é permitida e a flagelação é usada nos castigos de quem consome álcool ou tem relações sexuais ilícitas. O adultério é castigado com chibatadas e as relações homossexuais com a pena de morte. Que os trabalhadores estrangeiros de mão de obra pouco qualificada são muitas vezes explorados e quiçá remetidos à condição de escravatura com espancamentos, retenção de pagamento, confisco de passaporte, cobranças indevidas, restrições à liberdade, ameaças e agressões sexuais além de prisões arbitrárias. E como se isso não lhes bastasse, muitos deles são explorados por engajadores no seu país a quem têm de pagar taxas exorbitantes. E cá entre nós, se pensarmos bem, não ouvimos já falar de algumas coisas parecidas em Portugal?
Claro que, mediante o coro inicial de contestação, o regime do Qatar prometeu fazer mudanças em todas as questões relativas a direitos humanos, para garantir a organização do Mundial de Futebol naquele país do Médio Oriente (que veio a conseguir através de meios pouco ortodoxos e lícitos) e que levariam à demissão de altos dirigentes do mundo do futebol. Mas, o certo é que o evento foi atribuído ao Qatar e não se viu no mundo civilizado nenhuma tentativa de boicote quando tal era possível e justo. Por isso, “quando a noiva está no altar” e nós somos “convidados” de pleno direito e aceitamos, esperando apanhar o “ramo de flores” com que os portugueses sonham, hoje mais do que nunca, não faz sentido que, agora, se levantem “virgens ofendidas” e moralistas de meia-tigela a gritar “aqui d’el rei” e a apontar o dedo, e quando já validaram coisas piores. E que moral temos para falar de “exploração de migrantes” se fechamos os olhos ao que fizemos aos emigrantes de Ourique e outras “paragens” nacionais onde é precisa mão de obra barata? Quantos anos andamos a assobiar para o lado? E até já nos esquecemos que milhares deles continuam por cá, muitos em situação que “valha-nos Deus”! Nem de propósito, hoje foi notícia mais um caso no Alentejo …
O Mundial do Qatar foi decidido em 2010 por uma quadrilha de gente corrupta, afastada (de bolsos cheios) por indecente e má figura, mas tem sido essa a realidade do mundo do futebol. Só os ingénuos creem no Pai Natal, mas mesmo assim esperam receber prendas! Sendo ele jogado no deserto, na areia, faria mais sentido ser futebol de praia e já a contestação não teria o mesmo mediatismo. O maior problema é que, debaixo dos oito estádios existe um enorme barril de petróleo e gás natural que dá para fazer o Campeonato mais caro da história e sobra uma riqueza imensa mesmo depois de umas quantas “prendas” que muitos mais gostariam de ter recebido. Não sei se é hipocrisia ou inveja o que meio mundo político anda a fazer chafurdando na lama, ma sem querer sujar-se.
O Qatar é um país pequeno, sem expressão, mas onde há dinheiro de sobra para querer o Mundial. E tem esse direito de se pôr em “bicos de pé” para ser visto por todo o mundo e a ter as regras e normas de vida que entendem. Perceberam que o futebol é uma boa montra, daí a aposta ter sido muito alta. Daí terem apostado forte nas estruturas, como apostaram na FIFA e nas pessoas que a serviam e decidiram a escolha do organizador, sabendo da sua fragilidade: recetividade à corrupção. E como dinheiro não era problema …
O certo é que nenhum país impediu a sua seleção de participar, que se saiba nenhum jogador se recusou a estar presente por ser naquele país, os governantes apesar de mandarem uns bitaites, lá vão parar a título de dar força à sua seleção e as poucas manifestações são muito envergonhadas e discretas para não ser posto em causa o direito de jogar ou até assistir, coisa que ninguém quer. Esse ruído deveria ter sido muito forte e atempado sobre a FIFA e os representantes das Federações nacionais, os únicos responsáveis por o Mundial se estar a realizar ali. Porque os governantes do Qatar fizeram o seu papel. E quem não gostar de ir lá, que fique em casa, mas seguramente vai ver a seleção do seu país, ainda que pela televisão.
No entanto, o barulho provocado por milhares de vozes ao gritar golo e os cânticos dum estádio inteiro a incentivar a sua seleção abafarão o “ruído” fora de tempo à volta do país que acolhe o Mundial, calam as promessas de Marcelo em ir falar lá sobre direitos humanos, como nos farão esquecer “misérias” internas que nos deviam envergonhar.
Mas que não fiquem dúvidas: Eu sou dos que invejo e muito todos os cerca de 313.000 cidadãos do Qatar, porque gostaria de usufruir do mesmo privilégio que eles têm. Não, não é o facto de terem o Mundial em 8 estádios espetaculares, nem de poderem ver os jogos ao vivo. Só os invejo por serem dos poucos habitantes deste planeta que não têm de pagar impostos …