Chorar quem parte ou celebrar a vida

Num cemitério da Lituânia um homem para diante de uma sepultura e chora convulsivamente durante alguns instantes. Depois recompõe-se, vai um pouco mais adiante e detém-se frente a outra sepultura e entoa cânticos em honra da pessoa ali enterrada. E, passando de uma a outra, vai visitando mais algumas até se retirar na companhia da mulher que o espera e conforta. É o “visitador de campas” contratado por descendentes dos falecidos e pago para chorar ou cantar certo número de vezes por ano, conforme os seus desejos. Os mortos não são da sua família e muitos deles nem os conheceu. Diante daqueles em que tem de chorar, torna-se mais difícil pois tem de se comover, pensando em momentos tristes que o emocionem para que o choro e as lágrimas corram naturalmente. Já o faz há muitos anos, sendo um “trabalho” difícil para ele que é sensível e emotivo, embora tenha na mulher um apoio para superar a sua tristeza. O curioso da história é que alguns “contratantes” querem que chore diante da campa, mas outros desejam que cante. Quem estará certo? Diante de um túmulo devemos chorar ou cantar? Sem querer julgar tal costume cultural de chorar ou cantar, muito menos por interposta pessoa, penso que ambos têm razão. O choro ou a cantoria, a tristeza ou a alegria, são duas faces de uma mesma moeda: homenagear o morto.                                                                                                    O choro é o mais tradicional direito e expressão de luto. Sai-nos do interior quando sentido e faz parte dos rituais de separação e entrega dos entes queridos que partem. Mas a cantar também se chora, isto é, celebra a vida de quem parte como aquilo que foi mais importante e deve ser celebrado. Essas diferenças na despedida ao defunto são tão antagónicas de cultura para cultura, de país para país e até de região para região. Mas o que importa neste processo, é honrar a memória de quem nos deixa e consolar quem fica em sofrimento, cedendo-lhes o ombro para chorarem à vontade.                                                               No Brasil os funerais acontecem em 48 horas no máximo, reflexo de como o brasileiro encara a morte e na tentativa prática de encerrar o sofrimento o mais depressa possível. No México, o Dia dos Finados é uma das festas mais populares e alegres do mundo. É comemorado com muito entusiasmo, amor, música, comida e fantasias da tradição asteca e católica. O funeral na Rússia é uma manifestação alegre, com roupas coloridas, para honrar quem nos deixou e consolar quem fica. Na Irlanda, o velório ainda é melhor do que um casamento. A família convida os amigos para o pub (bar) preferido do defunto, onde existe muita comida, cerveja e uísque, muitas histórias alegres, risos, alegria e música ao vivo, para festejar e rever as boas memórias do falecido. Nos enterros tradicionais em Nova Orleães, nos Estados Unidos, uma banda acompanha o cortejo fúnebre e, da casa do morto ao cemitério, toca música jazz, triste e dolorosa, com a multidão de rosto sério e ar carregado. Porém, mal o caixão esteja debaixo de terra, a banda passa a tocar música animada, a festa inicia-se e não tem hora para acabar, com todo o mundo a dançar, a comer e beber. O funeral começa com as pessoas a chorar, manifestando tristeza por quem morre e termina com risadas e grande alegria, canto, bebida e festa, em celebração e homenagem à vida do defunto na sua passagem por este mundo.                                                                                                         Em Portugal a tradição ainda é o que era e choramos, embora sejam bem conhecidas as frases: “o choro é uma expressão de fraqueza”, “o choro é a arma dos fracos” e, numa variante um tanto machista, dizer: “homem que é homem não chora”. Porque o choro, apesar de ser um fenômeno físico-biológico em que o corpo, ou melhor ainda, os olhos, derramam lágrimas, também é a forma de exteriorizar as emoções, os estados de alma e sentimentos. É um facto que o ser humano chora.                                      Entre nós já não existem as carpideiras, mulheres vestidas de negro, completamente, e estranhas ao morto, contratadas para chorar nos velórios e enterros alheios, com a intenção de aumentar a emoção no funeral e a popularidade desse defunto, embora ainda continuem a existir nalgumas zonas do Brasil, Itália, Grécia e até na China. Ainda assisti a esse ritual de choro histérico e encomendado que me ficou gravado na memória pelo choque e medo que apanhei porque era eu uma criança muito pequena quando o ouvi pela primeira vez. Mas, e apesar disso, tanto no velório como no funeral, ainda é no choro que encontramos a melhor forma de comunicar o sentimento de perda e dor, embora num ambiente menos pesado que outrora. O chorar como expressão do luto, como forma de trabalhar a perda dos entes queridos e aliviar a dor, faz parte do ritual das Exéquias e, mais ainda, é um direito. O choro é catártico, tem uma força curativa, é parte dos ritos de separação e de entrega dos nossos entes queridos que partem. Precisamos disso como parte do luto de cada um. Porém, para quem prefere formas alternativas de manifestar nas despedidas, as agências funerárias mais credenciadas já dispõem de um serviço de música tocada e cantada ao vivo, com temas que vão dos clássicos, ao gospel e litúrgicos, adequados à cerimónia e ao gosto de cada um.                                             Durante o confinamento por causa da pandemia, alguém desabafava: “Chorei muitas vezes na vida. Chorei quando levei algumas palmadas da minha mãe, mas o choro mais profundo e doloroso foi quando ela morreu sem ter a possibilidade de me despedir dela e estar presente no seu enterro. Embora tenha chorado muitas vezes e saiba chorar, já não sei como o fazer, porque a morte passou não apenas a ser vista, mas a incomodar, a apavorar, sem o direito de chorarmos os nossos mortos e cauterizar as feridas através dos ritos porque, o sofrimento e dor, podem ser uma ocasião que aproxima o ser humano de Deus”.                                                                                                                       A morte faz parte da vida, mas não fomos educados para isso. A nossa educação tem essa lacuna e a morte é-nos estranha até à hora em que chega. E então, irrompe a dor e as lágrimas porque é assim na nossa tradição de séculos. E não me parece que tão cedo adotemos o canto, a comida, a bebida e até a alegria para celebrar quem morre, pois lá bem no fundo estamos formatados no modo triste e choroso e não há volta a dar. Mas, como “a vida é feita de mudança” …  

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