A longínqua recordação do “carvoeiro”

A melhor forma de aprendermos a fazer uma coisa é fazendo, muito mais do que vendo fazer e, mais ainda do que lendo ou ouvindo dizer como se faz. E só quem passa pela situação de ter de fazer isto ou aquilo é capaz de valorizar o resultado desse trabalho seja ele qual for. Já Camões dizia “mais vale experimentá-lo que julgá-lo”. E se juntarmos a tudo isso o facto do produto obtido ser conseguido à custa de um grande esforço físico por não existirem máquinas como nos dias de hoje, mais difícil se torna avaliar o trabalho e sacrifício que está por detrás de algo a que tantas vezes nem damos valor. Foi a pensar nisso que me vieram à memória experiências de infância e que continuam bem nítidas no meu baú das recordações.   

Com nove ou dez anos de idade não fazia ideia de como era feito o carvão vegetal e vim a descobri-lo da melhor maneira. Um dia fui à “serra” – nome que dávamos às matas localizadas nas encostas a caminho de Barrosas – levado pela curiosidade de acompanhar um tio que por lá andava a cortar “madeira de pinho” para si próprio. À época, todas as matas da região eram povoadas de pinheiros e alguns carvalhos e, como ele precisava de madeira para a construção de uma casa, andava a cortar pinheiros para fazer as tábuas de soalho e forro, além das ripas que eram usadas na construção do “tabique” com que eram feitas as divisórias no interior da casa. Os pinheiros a cortar tinham sido marcados pois só se cortavam os grandes e grossos, os que eram precisos dois homens ou mais para abraçá-los. Tal escolha tinha uma razão de ser: essas árvores tinham muito “cerne”, aquela zona central mais dura e acastanhada, garantia de durabilidade já que, no dizer do meu tio “o caruncho não lhe pegava”.  Além do abate das árvores, feito à força do machado e dum “serrão” puxado por um homem de cada lado, era lá na mata que os pinheiros eram cortados em toros e serrados em tábuas ou vigas. 

Para serrar o toro era preciso colocá-lo numa posição inclinada, com uma das pontas apoiada no chão e a outra levantada a cerca de dois metros de altura e apoiada num tripé improvisado de madeira, tudo feito à força de braços pois não existia qualquer meio mecânico para o fazer. E estamos a falar de troncos grossos e muito pesados. Com o toro assim posicionado, parecendo um canhão apontado ao longe, um homem subia pelo tronco até ao ponto mais alto em equilíbrio muito precário e o outro colocava-se por debaixo numa posição difícil. Ora, assim colocados, cada um deles agarrava com as duas mãos um dos lados de uma grande serra presa numa armação de madeira e tensa com cordas e, só por si, era um espetáculo de equilíbrio, segurança, força e precisão ver os dois homens puxar a serra para cima e para baixo, serrando o toro lenta e continuamente, num automatismo mecânico e dele fazendo “nascer” lentamente tábuas de soalho ou vigas.

Mas dessa visita à “serra” o que mais retive na memória foi a figura de um homem que seguia atrás dos lenhadores. Era o “carvoeiro”. A sua matéria-prima era a madeira dos ramos, mais ou menos grossos e da “carucha” do pinheiro, depois de limpar os ramos finos e folhas, como subproduto já que os toros eram sempre usados para fabricar tábuas e vigas. Cortados com cerca de um metro de comprimento, os pedaços de madeira eram empilhados de um e de outro lado de um grande buraco retangular com alguns metros de comprimento e cerca de três de largura que o carvoeiro escavava na própria mata, formando duas pilhas homogéneas com uma altura de dois metros ou mais e com um “corredor” estreito no meio. Depois, cobria tudo com ramos, tanto a madeira como o “corredor”, e sobre estes colocava terra por forma a que ficasse totalmente isolado e transformado num enorme forno. Ficava somente uma entrada para incendiar a madeira e no ponto mais alto um buraco que servia de “chaminé” por cima do “corredor”. Já com a madeira enterrada, o “carvoeiro” pegava fogo à pilha de lenha, tapava a entrada e regulava a ventilação na “chaminé”, fazendo com que a madeira ficasse a arder lentamente durante cerca de duas semanas, tempo necessário para a transformar em excelente carvão vegetal, num processo de combustão prolongada. Dias depois já ele andava pelas portas da aldeia a vender carvão. Entusiasmado pela aventura, acabei por ir várias vezes à “serra” enquanto o meu tio teve de andar por lá.

Hoje, desde o corte das árvores à serragem em tábuas ou vigas, todo o processo é mecânico sem grande intervenção da força humana, ao contrário desse tempo. Além disso, tendo desaparecido essa figura que era o carvoeiro, a maioria de nós nem sabe como nem onde é feito esse carvão vegetal que compramos no supermercado e vamos queimando quando queremos fazer uma sardinhada ou churrasco, se bem que deve haver quem pense que o carvão vegetal existe por aí, sobretudo depois dos muitos incêndios que têm assolado as matas de Portugal. Mas aí, só sobram cinzas, sofrimento e perdas avultadas de bens. 

Hoje continua a existir a figura do “carvoeiro” nalgumas regiões deste país, embora com fornos de queima modernos e permanentes, além de toda a maquinaria conveniente para facilitar o trabalho, coisa que não existia antigamente, apesar de que muito do carvão vendido em Portugal provenha de outros países onde o preço de fabrico é mais barato. E percebe-se o porquê pois, se virmos bem, em quase tudo que compramos o que verdadeiramente importa é o preço … mais barato. Não é disso que todos andamos sempre à procura? 

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