A minha mãe está a dois anos e meio de completar um século de vida e, para nossa alegria, mantem uma boa saúde física e mental que lhe assegura qualidade de vida. Sempre que a tenho visitado nos meses de pandemia ela está sentada na salinha junto à cozinha, espécie de marquise aquecida pelo sol de verão e pela “salamandra” no inverno, tendo a minha irmã e a televisão por companhia, pois não abdica de “ver o Telejornal para se manter informada”. Quando lhe dizem que o Telejornal só apresenta desgraças e calamidades e que muito do que ali se diz não é verdade, responde tranquilamente: “Não há problema, pois eu só acredito no que quero”. Nesta segunda vaga de Covid-19 só sai para ir ao jardim e à missa, contida nos contactos com vizinhos e amigas, num novo confinamento voluntário para se proteger.
Quase em todas as visitas me põe a par das suas preocupações, sendo uma delas recorrente: “Eu tinha uma consulta marcada no mês de Março na minha médica de família, mas foi cancelada por causa do vírus. Fiquei à espera que me voltassem a marcar a consulta, mas até agora não me disseram nada”. Depois de desabafar sobre essa ausência de notícias relativamente à sua consulta desmarcada, acaba sempre por dizer: “Também não me faz falta nenhuma. Não me dói nada, não me posso queixar de nada. E se algum dia me doer alguma coisa, sei bem o que fazer. Vou a Lousada ao Hospital porque sou logo atendida e não tenho de ficar tanto tempo à espera”.
Duas coisas me deixam feliz na sua atitude. A primeira, é o facto de “não lhe doer nada” e de “não se queixar de nada”, o que é admirável, algo que eu, uns bons anos mais novo, já não posso dizer. A segunda, é o sentido prático de “saber o que fazer se lhe doer alguma coisa”!!!
A pandemia colocou um enorme desafio à humanidade e Portugal não foi exceção. E a resposta que o serviço público deu, com os altos e baixos, avanços e recuos, certezas e contradições, ações eficientes e exibicionismos patéticos, tem nos profissionais de saúde um trabalho heroico que deve ser reconhecido por todos sem exceção. Mas nesta luta que obrigou à mobilização geral dos recursos humanos centrada na pandemia, é um facto o grande esquecimento dos outros doentes, muitos deles em situação dramática e que foram deixados à sua sorte como é reconhecido por gente muito mais qualificada que eu, tendo um fim antes do tempo que lhes era devido e de quem a estatística Covid-19 nunca falará. Exemplo disso foi uma mensagem que recebi há dias de um colega e amigo. Dizia: “A Teresa deixou-nos”. Percebi logo que a sua mulher tinha falecido. Na impossibilidade de lhe ir dar um abraço a Coimbra, telefonei ao Carlos para saber o que se passara. Depois de alguns desabafos, falou-me da mulher, que era uma doente cancerosa estabilizada, com uma ida mensal ao Hospital. No entanto, a consulta de Março foi-lhe cancelada. Passou o Abril e Maio sem que fosse remarcada e, apesar da insistência, veio o Junho e Julho e nada aconteceu. Por muita insistência, só em finais de Agosto voltaria ao Hospital, onde fez um longo tratamento de oito horas. Quando entrou em casa desabafou com o marido: “Carlos, prepara-te porque não vou durar uma semana. Hoje mataram-me com o tratamento”. E só teve mesmo mais uma semana de vida … A Teresa, como muitos outros doentes que já partiram neste período difícil, seguramente não fará parte das estatísticas Covid-19 que a imprensa nos dá todos os dias.
Percebe-se que a capacidade de resposta não dá para tudo, mas não se explica convenientemente e as pessoas não entendem alguma falta de resposta, sobretudo dos cuidados de saúde primários. Nalgumas unidades, mais parecem que estão encerrados num castelo, onde se atende com um distanciamento social que não se limita à distância dos 2 metros da praxe, mas também fazendo questão de falar “de cima da burra”, com arrogância e desrespeito por aqueles que sofrem ou que vão procurar alívio para os seus que lá não podem ir.
Há dias contava-me a mãe de um amigo que vive num concelho vizinho, ter sido tratada como se tivesse “lepra”, apesar de estar devidamente protegida. Fora ao seu Centro de Saúde para entregar um documento e a senhora que a atendeu, mesmo atrás dum balcão, deu dois passos atrás, recusou-se a tocar-lhe e tomar conta dele, informando-a com muito maus modos: “Vá para casa e mande isso pela internet”. E a mãe do meu amigo, uma velhinha muito simpática, rematou a sua história: “Nem sequer me deu tempo para lhe dizer que não tenho internet e, se tivesse, não sabia como a usar” …
O combate a esta pandemia é a prioridade, não tenhamos dúvidas, e temos de estar todos envolvidos. Cada um de nós tem de fazer a sua parte. Percebe-se que o novo coronavírus é encarado de formas mais diversas. Uns com visão obsessiva, doentia, que leva à depressão e ao sofrimento permanente como se o vírus fosse já o fim. Outros, olham-no despreocupadamente, desvalorizando os riscos, o que se sabe e o que se diz, de forma leviana. Há os dogmáticos, que cumprem todas as instruções das autoridades, os conselhos da família, do amigo, dos vizinhos, da imprensa escrita e falada, às vezes contraditórias, mas achando que o último conselho é o melhor. E há os racionais, que se protegem usando o bom senso e fazendo a triagem da informação que lhes chega. E se a maioria tem o sentido da responsabilidade, da necessidade de se proteger e assim proteger os outros, há muitos que facilitam, pensando que por estarem em família já podem festejar um aniversário, a despedida do amigo, a chegada de alguém, Há dias uma senhora desabafava: “A minha comadre convidou-me para ir lá a casa no primeiro aniversário da minha afilhada. Já tinha 23 convidados e contava comigo. Perante a gravidade da situação da pandemia aqui na região, pedi-lhe desculpa, mas não iria porque o risco era muito grande. Ficou zangada dizendo que eram todos da família e eu tinha de ir, não havia problema. Bem quis chamá-la à realidade, mas ela só vê o aniversário da filha, como se a festa fosse muito importante para quem tem só um ano de idade” …
A verdade é que temos mesmo de nos “proteger” dos familiares que não vivem connosco todos os dias para não cairmos no risco do contágio inocente, porque de estranhos sabemos nós proteger-nos. Algo parecido com “que Deus me defenda dos meus amigos, que dos inimigos me defendo eu” …
Sejamos realistas. Estamos todos metidos no mesmo barco, no mar encapelado da pandemia e a enfrentar a segunda vaga, com o pessoal de saúde ao leme. Mas todos nós, sem exceções, somos chamados e temos um papel fundamental para “levar este barco a bom porto” e o mesmo é dizer, para nos salvar-nos. Se cada um fizer a sua parte no “combate” a este vírus e travar ao máximo a sua transmissão, vamos chegar a bom porto, seguramente, conscientes de que, mesmo assim, haverá uma fatura pesada a pagar. Em vidas, condição económica e segurança.
Antes de nos demitirmos de cumprir o papel que cabe a todos e cada um, lembremo-nos que podemos vir a fazer parte da estatística …