Trabalho de “todos e cada um” …

A provar que somos animais de hábitos, está o facto do confinamento me ter criado “habituação”, uma dependência como qualquer droga barata, mas viciante. É verdade. Agora quando tenho de ir à rua, não passo muito tempo sem me dar a vontade de regressar a casa, vestir as calças de ganga rotas (eu sei que estão na moda …) e uma T-shirt, calçar botas de cano alto e ir tratar no jardim/horta, para arranjar… uma dor de costas. É que eu faço batota no confinamento. Em vez de estar enfiado em casa como um eremita, “vou para fora, cá dentro” (como na publicidade que nos aconselha a fazer férias em Portugal) “dar cabo do canastro” e, estupidamente, fico feliz. Corro o risco de, se isto durar muito mais tempo, a habituação poder passar a “vício” e depois nem sequer querer sair à rua, muito menos ter de assumir responsabilidades lá fora. E, cá para nós que ninguém nos ouve, se calhar não perco nada. Se o novo coronavírus é um grande problema que não podemos ignorar nem esquecer, a verdade é que, através do confinamento, acabou por nos fazer refletir sobre a vida desenfreada que levamos e que há muito coisa importante que deixamos para trás no dia a dia da vida. Ora, nesta fase, houve tempo para dedicarmos à família, à leitura e à casa, nos conectarmos regularmente com aqueles de quem gostamos, além de tirar partido das curiosidades, anedotas e histórias sem fim que esta crise proporcionou, ajudando a amenizar o enorme problema sanitário, económico e social. 

Mas, pensando bem, quando houver uma vacina e isto acabar, vamos todos retomar a nossa vidinha, esquecer todas as reflexões sobre o consumismo, os problemas do degelo com o aquecimento global, as ilhas de plásticos e qualquer forma de poluição, o esgotamento dos recursos naturais, os desastres ecológicos, o stresse e a agitação do dia a dia. Voltaremos a “entrar de cabeça” na “vida antes do vírus” e seremos novamente “felizes” …

A questão do momento é o passo dado esta semana para o regresso à normalidade com a segunda fase do “desconfinamento”, palavra que não fazia parte do nosso vocabulário habitual, mas que passamos a conhecer desde que este vírus entrou nas nossas vidas, as virou de pernas para o ar e até nos obrigou a usar palavras novas. Abriram as creches, restaurantes, escolas e várias instituições e serviços, sendo certo que a preocupação é grande, porque é um processo de risco e, como tal, sujeito a recuos que ninguém deseja. Até o presidente da república, primeiro ministro e outras figuras da governação foram “almoçar fora”, num espetáculo desnecessário com a imprensa atrás, para nos mostrar que se come bem nalguns restaurantes da capital e que já se pode ir … vale a pena lá ir … se houver dinheiro para ir … 

É uma fase delicada, que exige responsabilidade de todos nós para não correr mal. É que não deixou de existir o risco de contágio e, por isso, podemos ter uma segunda onda de contágios que nos obrigue a “regressar a casa”, como em Singapura. O vírus não desapareceu por decreto, embora há quem acredite que sim. Relata a história que no caso da “gripe espanhola” ocorrido há cem anos, o grande desastre veio na segunda vaga, com a morte de muitos milhões de pessoas em todo o mundo. O facilitismo de então foi tal que se chegou a criar a Liga Anti-máscara nos Estados Unidos para combater o seu uso e deu no que deu.

Se há quem tenha receio e tome precauções – muitos foram os pais que se recusaram a levar os filhos para a creche neste primeiro dia do pós-confinamento, com medo – também se encontra quem ache que tudo terminou e são horas de voltar a fazer a vida normal, numa “normalidade perigosa”. Hoje mesmo dizia-me uma senhora que entrou num café/restaurante de máscara e … teve de a tirar. Sentiu-se mal ao ver que, estando completamente cheio, ninguém usava e nem sequer mantinha qualquer “distanciamento”. “Parecia que estavam a festejar o fim da pandemia. Tomei o café e saí com medo”, disse ela.    

O segredo do sucesso desta fase está na responsabilidade de todos, o que parece não ser fácil. Haverá sempre riscos e temos de os correr, mas usando das cautelas e precauções aconselhadas, mesmo que por mais absurdas que possam parecer. Ao proteger-nos, estaremos a proteger também os outros. O texto que se segue, de autor anónimo, ajusta-se como uma luva ao momento presente: 

“Era uma vez quatro indivíduos que se chamavam TodosAlguémCada Um e Ninguém.

Havia um trabalho importante (o regresso à vida normal depois do tempo de confinamento em casa) que tinha de ser feito (com toda a segurança) e pediram a Todos para o executar. Todos tinha a certeza que Alguém o faria. E Cada Um poderia tê-lo feito, mas na realidade Ninguém o fez. Alguém se zangou pois era trabalho de TodosTodos pensaram que Cada Um poderia tê-lo feito e Ninguém tinha dúvidas que Alguém o ia fazer.

No fim de contas, Todos fizeram críticas a Cada Um porque Ninguém fez o que Alguém poderia ter feito.

Moral da história:

Sem querer recriminar a Todos, seria bom que Cada Um fizesse aquilo que deve fazer, sem alimentar a esperança de que Alguém vai fazê-lo em seu lugar …

A experiência mostra que lá onde se espera Alguém, geralmente não se encontra Ninguém”.

Hoje, todos somos chamados a fazer “o nosso trabalho”, que é “cuidar de proteger o outro”, com responsabilidade e segurança. E medo … como o fizeram muitos pais na abertura das creches. Se calhar, bem. Será preferível que se vá lentamente pois o processo é novo e tudo vai ser diferente. Nas creches, hospitais, restaurantes, praias e tudo o mais.

E é velho o ditado: “Mais vale devagar e bem que depressa e mal” … 

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