Nada na vida é dado por adquirido…

Devo ter medo. Devemos ter muito medo, porque o mundo à nossa volta está inseguro, perigoso, eventualmente letal. Nalguns países, descontrolado, a caminho do caos. Se folhearmos jornais dos últimos dias, em Itália e Espanha a secção de óbitos tem mais de uma dúzia de páginas. E tudo por causa do novo “coronavírus” que, no dizer de quem sabe, nem sequer é um organismo vivo, mas “uma molécula de proteína coberta por uma camada protetora de gordura”. Invisível a olho nu? Certamente, mas só é “invisível” para quem não quer vê-lo, tal é a velocidade de propagação e a dimensão das consequências. Um vírus, um simples vírus anónimo, desconhecido e microscópico. Já nos tirou muito, mas pode tirar-nos muito mais. Para começar, já nos tirou a segurança, a certeza de um amanhã tranquilo e saudável. Tirou-nos salários, rendimentos, trabalho, além da possibilidade de exprimirmos os afetos através dum abraço, dum beijo, duma carícia ou de um simples cumprimento. Colocou-nos à distância dos outros, alegadamente para não o espalharmos por aí, mas sem certezas pois não o vemos e nem sabemos se o temos ou o tem aquele com quem falamos. É um jogo de “cabra-cega”, jogado às escuras e de olhos bem vendados. Devemos ter medo? Claro, sem entrar em pânico, tomando as cautelas que todas as entidades sanitárias aconselham. Com rigor, o máximo rigor. Disso depende a sua evolução e a segurança, nossa e dos outros, porque todos estamos no mesmo barco.

Pode-se dizer que esta pandemia é democrática, já que nos nivelou a todos, porque todos estamos expostos ao contágio. Ricos ou pobres, famosos ou anónimos, altos ou baixos, homens ou mulheres, pretos ou brancos, justos ou pecadores, intelectuais ou ignorantes. Ele não exclui ninguém, independentemente da classe, gênero, religião ou raça. Mas não é tão linear quanto isso, pois certamente estará mais protegido aquele que se meteu no seu avião privado e voou para uma ilha isolada onde há poucas possibilidades de contágio, do que aquele morador duma barraca nas favelas de Rio de Janeiro ou da África do Sul. Veja-se o caso do rei da Tailândia: só está em “isolamento” num hotel de luxo na Alemanha, com 20 concubinas …

Também se pode dizer que o novo coronavírus fez de nós exilados na nossa própria casa, obrigando-nos a regressar ao convívio da família. E devemos tirar partido disso, dando aos nossos o tempo que não concedíamos antes da sua chegada. Será que vamos aproveitar ou cansamo-nos depressa uns dos outros? Será que isto nos vai servir de lição para o futuro?

Esta terrível pandemia fez-nos descobrir o melhor e o pior que há no ser humano. Ao sermos confrontados com ela, tanto encontramos a solidariedade de quem partilha o que tem com os outros como damos de caras com o egoísmo de quem só pensa em si, açambarcando e ignorando as necessidades de quem lhe está próximo. E tanto vemos atitudes de generosidade e dedicação aos mais frágeis, como o fazem as senhoras que cuidam dos idosos nos dois Lares da Misericórdia de Lousada, em períodos contínuos de sete dias, noite e dia dentro das instalações com os idosos, sacrificando as famílias e as suas vidas, como vemos os “bem instalados” que não querem, nem se sujeitam a estender a mão a quem precisa, especialmente nos dias que correm, ainda que seja somente para o ajudar a levantar-se.  E tanto vemos os profissionais de saúde numa luta constante e aturada até à exaustão, alvos privilegiados do mal que combatem por nem sempre estarem devidamente protegidos, como topamos negligentes a “fazer turismo em dia de sol”, sem respeitar instruções das autoridades no combate à pandemia. Não devo deixar de citar o contraste entre fornecedores da Instituição a que estou ligado, em que uns ofereceram o que lhes foi possível dos produtos de proteção, enquanto outros apareceram … com propostas vergonhosas de tão especulativas e oportunistas. Uns abutres. Da solidariedade ao egoísmo, da dedicação à indiferença, da generosidade à maldade, do trabalho ao absentismo, são múltiplos os exemplos que nos sensibilizam e fazem acreditar na humanidade, tal como existem os que chocam e nos tornam descrentes. 

Uma das grandes lições que temos obrigação de tirar desta crise que nos afeta a todos e de consequências sanitárias e económicas ainda não mensuráveis, é que “nesta vida, nunca podemos dar nada como adquirido”. Se pensarmos que há pouco mais de um mês fazíamos a vida normal, trabalhando e produzindo riqueza, planeando com a família sobre qual o destino para as próximas férias, eventualmente numa viagem há muito sonhada, programando a conclusão de um negócio, a abertura de mais uma loja, andando por aí livremente sem restrições e sem limitações, podendo “ir à bola”, ao shopping ou ao cinema, jantar com os amigos ou viajar livremente em qualquer meio de transporte, com a certeza de que o amanhã seria risonho, que sentimento nos domina volvidos que são pouco mais de trinta dias e o que poderemos esperar dum amanhã que é uma grande incógnita e em que a maior parte do que estava dado como certo já não o é? 

De repente, deixamos de poder falar de liberdade quando estamos confinados a quatro paredes por tempo indefinido, condicionados a saídas esporádicas e breves; deixamos de poder falar de segurança já que até temos medo da proximidade dos outros, medo de perder o trabalho, medo da doença; deixamos de poder projetar o futuro que estará condicionado, quando não hipotecado por muitas incógnitas; deixamos de poder fazer a vida normal, porque tudo à nossa volta perdeu a normalidade. Refugiados em casa como meros prisioneiros, temos medo do vírus como se de um fantasma se trate, sem saber por onde anda, quando chega, se nos vai assaltar e o que nos vai roubar: é a carteira? O emprego? A saúde? Ou a vida? De repente, perdemos as certezas e só ganhamos dúvidas e medos. Enfim, “não podemos dar nada por adquirido”, pois tudo o que existe na nossa vida pode deixar de existir de um momento para o outro. O sinal que tudo é transitório e nada é nosso … embora haja sempre um amanhã.

Leave a Reply