Mal por mal, qual o mal menor?

Datas não são o meu forte. Deve ser por isso que não fui bom aluno a história. E porque “levava na cabeça” de vez em quando por esquecer aniversários ou outras datas tidas por importantes. E ainda levo. Mas há um dia que não esqueço e sobre o qual amanhã já se completam onze anos: aquele em que encontrei a Luísa tombada de lado na casa de banho sem dar acordo de si na sequência de um derrame cerebral, que se viria a repetir de forma mais grave cerca de quinze dias depois quando ainda estava internada no Hospital de S. João. Alguns meses de hospital em hospital, de tratamento em tratamento, de avanços e recuos, fizeram com que chegássemos a uma situação relativamente estável, mas com perdas graves. E essas perdas são totais, ou quase, no equilíbrio, na autonomia, na memória de curto prazo, além de outras condicionantes graves em termos de higiene e saúde pessoal. Desorientada no espaço e no tempo, muito dificilmente consegue saber onde está, para onde vai, qual é o dia ou o mês. Ao longo destes onze anos “habituamo-nos” às suas limitações e ao seu mutismo, estando quase sempre junto de nós, mas na realidade bem longe, num mundo que é só seu. É muito raro ouvi-la dizer que lhe dói isto ou aquilo, mas de vez em quando verbaliza um “estou mal disposta”, que pode significar várias coisas, até mesmo que alguma coisa lhe está a doer. Enfim, uma vida passada entre a cama e a cadeira de rodas, mas num mundo à parte …

A sua “ausência da realidade” é como uma moeda de duas faces. Por um lado, é uma perda terrível que a faz estar fora do mundo que lhe passa ao lado a cada momento, sem o perceber, pois não consegue compreender um filme por mais simples que seja a sua história. Por outro, acaba por ser uma bênção, pois não tem consciência do estado de saúde e da dimensão das suas limitações, vivendo o dia a dia com tranquilidade. Se tivesse essa perceção, como estaria o seu lado psíquico?

Foi neste estado de saúde que hoje, às seis da manhã, fui acordado pelas palavras que a Luísa proferiu: “Estou a sofrer muito”. E logo de seguida, acrescentou: “O que me vai acontecer?”. Percebi logo que a Luísa estava bem acordada e tomara consciência do seu estado e das suas limitações. Daí o seu sofrimento e a sua preocupação pelo que lhe iria acontecer em função delas. Foi-se o sono e veio um pedaço de conversa para a acalmar, até conseguir que voltasse a adormecer, para só acordar quando a manhã ia adiantada, sem memória alguma do que se passara e de novo “ausente”. 

Não deixa de ser curioso que, no dia a dia e enquanto está connosco sentada na cadeira de rodas, embora pareça estar concentrada na televisão ou noutra coisa qualquer e não dê atenção ao que fazemos ou dizemos, de vez em quando faz um comentário assertivo e que se encaixa perfeitamente na conversa, como se estivesse atenta. Foi o que sucedeu quando uma estudante de enfermagem a fazer estágio num hospital contava o que lhe tinha acontecido com um doente afetado por problemas mentais e que não reagia a nenhum estímulo. Dizia ela que, para estimular o doente e ver se tinha alguma reação, quando a enfermeira passou, disse: “Já viu que a senhora enfermeira é gira?”. Aquele doente teve então um sorriso rasgado. A Luísa, que ouvia calada, meteu a “colherada”: “É porque ele não estava doente das vistas …”.  

Tenho muita dificuldade em perceber se estes “comentários”, apesar de simpáticos, se serão conscientes ou reações instintivas, fruto da sua forma de ser e brincar com as situações. Ontem mesmo, quando víamos a história de um português pelo mundo, para a despertar do mutismo em que se refugia, comentei: “O rapaz é bonito”. E ela reagiu de imediato: “… para ver de passagem”. Mantem esse instinto natural da resposta pronta “na ponta da língua”. Consciente ou inconsciente? Boa pergunta …

Não sei se a sua “ausência” da realidade se deve somente à doença que a afetou ou se é alguma medicação específica para impedir que novo derrame volte a acontecer que a inibe e lhe retarda o “acesso” à realidade. Enquanto leigo nestas questões de saúde, imagino que antes do amanhecer e quando já estava um pouco repousada e “livre” dos efeitos inibidores dessa tal medicação, conseguiu chegar até mim, à realidade, e ganhou consciência do seu verdadeiro estado físico e das suas limitações, ainda que por um período de tempo curto. E foi aí que ela manifestou o “seu sofrimento” pelo que estava a “ver” em si própria. Porque, pela forma como disse “estou a sofrer muito”, deu a entender que tinha percebido o seu verdadeiro estado de saúde e que teria sido um “choque” enorme para quem voltava à realidade. Mais ainda, quando disse “o que me vai acontecer?”, manifestou um medo enorme do futuro, como se esse futuro incerto e negro só começasse naquele momento. E eu, na minha preocupação, também fiquei com medo. Medo de que esse “acordar” seja mais frequente, duradoiro e até permanente e pelas consequências que isso poderá trazer para a saúde psíquica de alguém que tem tendência para depressões.

Agora mesmo, ao olhar para ela de olhos fixos na televisão como que hipnotizada pelas imagens contínuas e variadas que a sua “memória de curto prazo” já não retém, questiono-me sobre o que será melhor para a sua muito relativa “qualidade de vida”: Se esta tranquilidade aparente, fruto da “ausência” do mundo real que não compreende e da falta de consciência das suas grandes limitações físicas e psíquicas, mas que não lhe trazem ansiedade nem agitação ou pelo contrário, a hipotética de uma crise depressiva consequência de alguma melhoria no estado de saúde, suficiente para a consciencializar de como está, mas não o suficiente para a curar??? Por uma questão de humanidade e, não sei, se com alguma dose de egoísmo, prefiro ter junto de mim a Luísa tranquila e capaz de fazer intervenções que nos fazem sorrir. Porque ela sorri também …   

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