Quando morre um “Homem Bom”, todos perdem e o mundo fica mais pobre. Perde a família, perdem os amigos, perdem aqueles com quem se relaciona, perde a sociedade. Enfim, perdemos todos. Porque não é todos os dias que se encontra um “Homem Bom” (e com este título quero referir-me aos dois sexos para não ser acusado de descriminar a mulher). Rico ou pobre, um “Homem Bom” é raro, algo que quase já não se fabrica. Tem que conter em si um misto de genes da bondade e educação a condizer, respaldada pelo bom exemplo de vida dos pais, porque é fundamental. A principal característica que o “Homem Bom” transporta consigo é a de querer sempre o melhor para os que estão à sua volta, para estar de bem consigo. A bondade deriva do amor ao próximo. Daí a sua permanente preocupação com os outros, mesmo antes de se preocupar consigo. Por isso, nele esse egoísmo não existe porque dá prioridade às necessidades dos que o rodeiam. Diz o Salmo que “os passos de um homem bom são confirmados pelo Senhor … ainda que caia, não ficará prostrado” …
Paulo foi um jovem que não quis concluir o seu curso universitário e preferiu ir trabalhar com o pai, proprietário e principal responsável de uma empresa de média dimensão. Durante anos fez da empresa a sua escola para a vida e com o pai aprendeu tudo o que precisava aprender para o poder substituir no dia em que tomou a decisão de se reformar e entregar-lhe “o leme do barco”. Por isso, foi com toda a naturalidade que assumiu essa pesada responsabilidade, sendo que depressa ganhou o respeito e a amizade dos colaboradores. A sua juventude e dinamismo fizeram com que a empresa alargasse os seus horizontes a novos mercados, o seu humanismo fê-lo ganhar todo o respeito dos trabalhadores.
Mas a globalização e a crise, associadas a perdas muito grandes com a falta de pagamento de clientes angolanos e espanhóis, arrastaram a sua empresa para a insolvência, apesar de todos os esforços para a salvar. E então, a sua maior preocupação passou a ser os trabalhadores, porque a empresa ficou sem meios para pagar os direitos que lhes eram devidos. Aí chegado, rejeitou a ideia de ficar a dever-lhes um cêntimo sequer. Podia fazer como a maioria faz nestas situações, escondendo os bens em nome de outros. Mas recusou-se e nem sequer deu ouvidos aos apelos de familiares e amigos para salvaguardar a casa e o carro. Não, tinha de cumprir com aqueles que o serviram e não podia ser de outra forma. Para isso, vendeu um a um todos os bens pessoais que tinha, desde a casa da família, o carro, terrenos (incluindo um onde projetava construir a nova residência), o mobiliário, a moto, as pratas e até as joias pessoais da mulher. Foi tudo. Só ficou a roupa de cada membro da família. Aos insistentes apelos de quem lhe era mais próximo disse sempre que não, com um argumento de peso: “Eu tenho capacidades e conhecimentos para me defender que a maioria das pessoas que trabalhava comigo não tem”. E aceitou, com naturalidade, ficar sem nada.
Recomeçou a vida do zero no Brasil por conta de um empresário que lhe prometeu salário e compensação pelos resultados. Mas viria a não cumprir. Regressou a Portugal para trabalhar, restabelecendo a vida profissional, económica e familiar baseado nos princípios que sempre o nortearam da retidão, verticalidade e preocupação pelo próximo. Mas o futuro nem sempre é justo para os justos. Quando tudo parecia voltar a sorrir, uma doença maligna atirou-o para as rotinas dos hospitais, sujeito a tratamentos intensos e agressivos, bem como aos avanços e recuos da doença. À quimioterapia, fez uma reação alérgica brutal que lhe deixou o corpo em ferida, num sofrimento horrível. Mas aceitou-o sem revolta nem desânimo. No final, só perguntou ao médico: “E agora? O que me resta”? Manteve a esperança intacta ou, pelo menos, soube transmitir essa esperança a familiares e amigos. Só quando quiseram extrair-lhe o tumor para lhe darem mais algum tempo de vida, recusou dizendo que, a partir daí, era uma questão de calendário, numa aceitação do fim sem queixas, apesar da violência das dores. Um ciclo duro, onde colheu alguns frutos do muito amor e generosidade que plantou na vida, ao ficar rodeado por familiares e amigos incondicionais que nunca o deixaram só. Até o patrão e amigo não deixou de lhe pagar o vencimento por inteiro ao longo de mais de dois anos, pela sua capacidade profissional e técnica, mas sobretudo, pela sua afabilidade e humanidade.
Sabendo que ia morrer a curto prazo, a sua preocupação foi sempre para a mulher, a filha e o irmão que padecia de doença semelhante, a ponto de comemorar com grande alegria a redução das metástases dele. O seu respeito pelos outros era tal que, quando o cunhado lhe fez uma adaptação para o sofá, sempre que ele estava presente tinha a preocupação de ficar ali sentado e só o abandonava já depois dele sair. Apesar daquela posição lhe ser muito mais dolorosa …
Nos últimos meses permaneceu na sua residência, mas quando sentiu que estava a ficar sem tempo, quis ir para o hospital para a sua filha não ficar com a imagem do pai a morrer em casa. Despediu-se da sua irmã, com quem tinha uma grande cumplicidade, com um “Obrigado por tudo. Um dia destes encontramo-nos outra vez” e pediu para lhe prometer “que à mulher e à filha não faltasse nada. E não falava de dinheiro”. Despediu-se daqueles de quem mais gostava, até pedir à irmã: “Por favor, não deixes vir mais ninguém, porque já não tenho força para mais despedidas”.
Mas a mais notável das suas ações, aquela que revela uma nobreza de caráter invulgar só acessível a alguns Homens, foi a vontade expressa de se despedir daqueles que o prejudicaram de uma ou outra forma, para lhes conceder o seu perdão. E fez questão de pedir ao padre celebrante para, na cerimónia do seu funeral, nessa hora de adeus, lhes dizer: “Àqueles de quem não me despedi, àqueles que me prejudicaram, às pessoas de quem a vida me afastou, eu quero dizer-lhes para não viverem mais com remorsos. Eu quero dizer-lhes que estão perdoadas. E não vale a pena viverem com ressentimentos, porque o que mais conta é o perdão. Que sejam muito felizes e não se deixem dominar pelas mágoas”. E ele sabia que estariam lá alguns …
Em vida semeou amor e amizade, reunindo regularmente ao longo de anos com um grupo de familiares e amigos, para confraternizar. E a sua memória permanece viva nesse grupo, que continua a reunir com a mesma regularidade, a mesma alegria, o mesmo entusiasmo como ele gostaria que vivessem, tirando fotos que colocam no Facebook com uma dedicatória muito especial: “Para ti, Paulo” …
Porque sabem que ele está lá para as receber …