Quando morre a avó, perde-se tanto …

Avó também é mãe. Mas, muito mais que isso, é mãe de mães, o saco de histórias feitas belas prendas para os netos, a experiência de vida transformada em sabedoria, o rosto engelhado com alma macia, um coração de mãe adoçado pelo mel da idade. Quem tem uma avó ao longo de muitos anos tem um tesouro e pode orgulhar-se de viver com a história. Avó verdadeira marca a infância dos netos, é alguém especial que ensina coisas sábias da vida até pelo exemplo, que conta histórias de encantar, quer saber da vida dos netos, ser a confidente que compreende e não repreende, ouve e não acusa, ensina e não cobra. Sempre sabe dar um abraço quando todos querem dar castigo. Avó é cabelos brancos, olhos vivos, rugas profundas. Também regaço de netos e ajuda de filhos, sorriso tranquilo, armazém de paciência. Mas avó é mortal, é uma despedida, é perda, é adeus, um “até breve”.

Foi assim que morreu uma avó, de seu nome Maria, já na última etapa para chegar ao centenário. Teve vida plena e, por isso, deveríamos celebrar a sua partida para uma outra vida, se acreditamos nela, em vez de chorar a perda, uma manifestação do nosso egoísmo. Mas seus netos fazem o luto e choram, porque no luto não há certo nem errado já que a perda pode trazer tristeza, confusão, raiva, choro e solidão. O tempo curará tudo isso. E ajuda pensar no que se aprendeu com ela, na felicidade de a ter tido na vida, de saber que teve de atravessar o sofrimento e a dor, mais moral que físico, para chegar até aqui.

Nasceu pobre, igual à maioria das gentes do seu tempo e desde bem cedo teve que trabalhar como “criada de servir”, a profissão de uma vida, longa. Quando ainda solteira engravidou. Os pais, condicionados pela moral espartana de então, não aceitaram e, clamando desonra e vergonha da família, expulsaram-na de casa. Foi acolhida pelos donos do lar onde “servia”, que a trataram não como empregada, mas antes como filha. Dali saiu para casar na igreja com o amor da sua vida, um mês antes de nascer a filha. Dizia que nunca casaria com um lenhador ou pedreiro, pela vida dura que levavam. E o que lhe saiu na rifa foi … um lenhador.

Encontrou na sogra aquilo que perdeu da mãe, em proteção, carinho, compreensão e amor. Mas retribuiu-lhe em dobro, ao ponto de fazer questão de tirar para ela o melhor bocado do almoço de domingo e levar-lho a casa mesmo antes de comer. Trabalhou em diversas casas de família, sendo profissional excelente, zelosa e merecedora de toda a confiança. Por onde passou deixou amizades para a vida, respeitou e fez-se respeitar. E até soube manter na ordem um patrão conhecido por “abusar” das empregadas. Ignorou-o quando simulou doença só para a atrair e quando na cozinha lhe apareceu por trás e a abraçou pela cintura, não hesitou um segundo e passou-lhe a faca ao correr dos dedos fazendo-lhe um golpe em todos eles que o fez dar um salto, recuar e gemer a sério. Acabou-se ali o “assédio” …

Em casa, acendia o lume no lar com pinho, lenha e tonas de eucalipto que apanhava no monte e carregava à cabeça atado molhes. Por duas vezes foi chamada à GNR, acusada por um proprietário forreta que aos pobres nada dava. Só lhes tirava o suor. A sua vida ficou marcada pelo trauma da expulsão de casa pelos pais. Só conseguiu apaziguar a mágoa quando voltou a ouvir deles o “Deus te abençoe, minha filha”. Ao morrer a avó Maria perderam-se histórias, sabedoria, experiência, memórias e tantas coisas mais. Mas ela ganhou: regressa finalmente à casa paterna e ao convívio dos pais …

Porque é um hino maravilhoso e sentido à “Avó Maria”, a “Guerreira”, da autoria de uma neta, não posso deixar de partilhar este poema:

“Onde estão teus cravos Mulher?

Gastaste seu cheiro para abafar tuas lágrimas

Abafaste um regime para vencer tua luta

Desafiaste autoridades para sustentar tua casa.

Mulher de trabalho árduo

Que sempre ajudaste quem por ti clamou

Trabalhaste na dura labuta para seres alguém.

E foste, e és.

Irmã mais velha de uma imensa família.

A ti eram imputadas todas as fainas

Grávida e sem matrimónio consumado

Por teus pais foste excomungada

Verteste lágrimas de sangue.

Mas tua força maior não vacilou

O Homem que ao teu lado estava

E que teu coração cedo roubou

Não te abandonou, sempre te amou.

Tua força era medonha

Teus dias completavam muitas horas

Tuas mãos concebiam trabalhos muitos

Tua cabeça molhos de lenha carregou

Para tua lareira arder e bocas alimentares.

Onde estão teus cravos Mulher?

Cortaste-os para as sepulturas asseares

Dos entes que partiram sem deixares

Mulher a quem os anos levaram

A força braçal imensa

A destreza de tuas pernas

O sorriso e as palavras poucas.

Onde estão teus cravos Mulher?

Estão agora em teu jardim

Que admiras com prazer

Nos dias que descontam

Tuas histórias de Mulher

Teus conselhos prudentes

Tuas palavras parcas.

Onde estão teus cravos Mulher?

Para sempre em teu coração…

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