O Latoeiro

Não nasci entre brinquedos de plástico nem sequer fui lavado em banheira de plástico, porque ainda não existia esse material que veio revolucionar a produção de embalagens, peças para automóveis, todo o tipo de acessórios, utensílios de cozinha, vasilhas e os milhares de artigos que hoje se fabricam com ele. O plástico só viria a entrar mais tarde nas nossas vidas. E então, como é que nós vivíamos, pergunta a geração de hoje? Como se transportava a água, de que eram feitas as diversas vasilhas, os brinquedos, embalagens e tantas coisas mais? Em suma, como era possível viver sem o plástico? Bem ou mal, ainda vivi muitos e bons anos sem sequer saber o que isso era. Muito bem, para benefício do planeta que ainda nem imaginava o que aí vinha para o poluir.

Bem para nós, porque apesar de não dispormos de um produto barato e moldável como o plástico, não morremos por causa disso. O facto de não haver plástico obrigava-nos a utilizar materiais que estavam disponíveis à época e a ser mais criativos. A maioria dos brinquedos eram feitos em madeira por algum habilidoso ou mesmo em casa, desde o peão ao espeto, da bilharda à fisga. Havia outros em barro como os apitos e bonecos diversos. E alguns ainda em chapa. O cântaro para ir à fonte era em barro, mais barato do que os feitos em chapa, que conhecíamos por “lata”, se bem que não saiba dizer qual o material mais usado no fabrico de vasilhas. Quem fabricava artigos em chapa (“lata”) eram chamados de “latoeiros” (e não de chapeiros).Perto da casa dos maus pais havia um, o Miro “Latas”, filho do senhor Paulino e da senhora Albertina e irmão do Alberto “espingardeiro”, herdeiro na habilidade, inteligência e criatividade. Tinha a oficina numa das onze casas do “bairro” que o meu pai mandou construir em 1951, numa conceção de habitação social avançada para a época. Não existindo a moderna maquinaria de hoje para trabalhar a chapa, toda a modelação era feita manualmente, com a ajuda de ferramentas bem rudimentares, algumas delas fabricadas por ele, tanto no fabrico de vasilhas (fosse o almude, o cântaro, o litro), como de caleiros para os telhados (e é bom lembrar que, não existindo qualquer maquinaria para cortar, dobrar e curvar a chapa, todo o trabalho era feito à mão, inclusive dar a forma arredondada ao caleiro, o que só era possível à custa de muitas marteladas…), almotolias, candeeiros, gasómetros,  funis e balsas (funil grande para trasfega do vinho), baldes para tirar água dos poços e outros utensílios.

Acendi muitas vezes a forja e dei à manivela para aquecer os ferros de soldar até pô-los em brasa. E era com estes ferros e um pouco de solda – feita ali, num cadinho, de uma mistura de estanho e chumbo em proporções de que já não me recordo – que a chapa, depois de moldada e recortada, era soldada a estanho.

Foi na sua oficina que vi nascer um cântaro de “lata” que depois de pronto revestiu com placas de cortiça virgem. Entregue à cliente, só o voltei a ver quase um mês depois nas Festas da minha terra em honra de S. Gonçalo, embrulhado em folhas de hera, à cabeça da mulher que o encomendara, apregoando a água doce e fresca (da mina). Ainda bebi um “caneco” desse refresco, de uso coletivo e sem direito a ser lavado (não deviam existir micróbios nesse tempo…), que a mãe me comprou para matar a sede. Sabia a limão e era uma maravilha …

Foi com o “Latoeiro” que aprendi a fabricar vinho doce, incluindo a própria “vasilha de fermentação”, que é muito interessante. Depois de uma tarde de aulas na escola primária, fui até à sua oficina e dali fomos às uvas “morangueiras” aos Morgadinhos, já maduras e com aquele cheirinho típico que nos aguça o apetite. Depois de encher a barriga, ele entrou pelo campo de milho dentro até encontrar uma abóbora, pois era costume na região semear abóboras e feijões entre o milho. Tirou então uma navalha do bolso e com ela fez um corte em quadrado na parte superior da abóbora, como se fosse uma tampa, que retirou com a ponta da lâmina. Depois, meteu a mão pelo buraco e retirou todo o miolo, incluindo as sementes, num processo rápido de limpeza eficaz, acabando por construir como que uma pequena “vasilha”. Assim preparada, foi só enchê-la com uvas “morangueiras” e esmaga-las à mão para fazer o mosto. Para completar o trabalho, foi recolocado o quadrado que servia de tampa, com um pequeno corte para entrar o ar, mas de tal forma que o lavrador se passasse por ali não se apercebia que a abóbora tinha sido “violada” e transformada numa “pipa”. Dois dias depois voltamos ao local do “crime” para beber vinho doce como o mel através duma cana da índia furada. Aprendi tão bem a lição que, por mais alguns anos, repeti a dose, mas já sem a orientação e presença do “professor”, mas de outros alunos.

Na casa ao lado trabalhava o Avelino, “pauzeiro” de profissão. Fazia manualmente os “cascos” em madeira de amieiro para a fábrica de tamancos dos Eidos Novos. Meu irmão António, eu e outros rapazes de então eramos assíduos frequentadores da casa dele, passando horas e horas junto ao “banco” do Avelino em amena conversa depois das aulas. Quando o Miro estava a trabalhar na “oficina”, também por lá nos perdíamos até porque, além de ser inteligente e perceber do ofício, também tinha jeito para a malandragem, sendo o “cérebro” das incursões que se faziam ora ao vinho doce do lagar da Quinta de Talhos, aos melões da Quinta do Souto ou às cerejas nas Cepas, para onde mobilizava o grupo. E com a cumplicidade do Avelino, de vez em quando pregava-nos uma partida, sendo a mais comum fazer sentar a “vítima” num banco de madeira preparado para o efeito. Faziam-lhe dois furos muito finos e num deles enfiavam uma agulha com o bico para cima, presa numa linha que passava pelo outro furo. Quando a “vítima” se sentada no banco, um deles puxava pela linha e esta fazia subir a agulha no buraco, picando-lhe o traseiro e fazendo com que desse um salto. Só depois de duas ou três picadelas ou dos sorrisos contidos das testemunhas é que a “vítima” descobria a razão do “desconforto” daquele banco.

Até partir para a “terra” onde não são necessários artefactos em lata, manteve-se na profissão já adaptado às novas tecnologias, aos novos materiais e à nova designação que lhe conferiram na sua profissão: picheleiro. Embora para mim, mesmo quando o encontrar naquele lugar onde não se devem fabricar vasilhas de “lata”, ele não deixará de ser o “Latoeiro”, amigavelmente o Miro “Latas”, a quem não posso deixar de agradecer as “lições” que me deu enquanto “professor”.

Leave a Reply