Temos de desconfiar até da sombra…

Com uma irregularidade quase mensal, integro um pequeno grupo de “jovens da minha idade” que passaram por uma vivência comum tão intensa e tão forte que, sempre que se encontram, têm de … almoçar e conviver. Pois é, isto de celebrar a amizade implica sempre “meter os pés debaixo da mesa”. E, para falar, é preciso “molhar a palavra”. Dentro do grupo temos o Toni, nascido e criado numa das zonas mais típicas do Porto, figura peculiar cuja vida daria para escrever “não um, mas vinte livros”. Do nada, se fez um dos maiores industriais na sua área de atividade; de família humilde, alcançou excelente posição económica e financeira; de jovem imberbe, tornou-se grande boémio e frequentador da noite; de homem de muitas mulheres, passou a ter uma vida de família como homem de uma só; para depois, “cair aos trambolhões” e num curto espaço de tempo, em alucinante derrocada profissional, económica e familiar, ao ponto de viver à conta de uma pensão de miséria. Fez de (quase) tudo na vida, começando logo em criança a saltar do tabuleiro inferior da ponte D. Luís para apanhar moedas de “cinco coroas” ou cinco escudos que atiravam ao rio Douro ou a recolher carvão caído dos comboios entre as Estações de S. Bento e Campanhã para vender a um candongueiro e ter dinheiro para pão com chouriço. Entre as muitas atividades de uma vida tão multifacetada, trabalhou anos a fio em feiras e romarias no negócio de tômbolas da família, barraca de matraquilhos, poço da morte e outros, fazendo de palhaço, motociclista, vendedor de rifas, jogador de matraquilhos (era “fora de série”. O pai apostava nele e ganhava sempre, apesar de precisar de uma grade de cerveja para ficar à altura da mesa de jogo) e outras funções.

Como já são longínquos esses tempos, revelou o segredo da tômbola onde a escolha do número da rifa premiada era feita pelo ratinho que largavam no meio da grande mesa redonda. Após alguma indecisão, o ratinho dirigia-se para um dos numerosos buracos na periferia da mesa, cada um deles assinalado com um número, tantos quantas as rifas vendidas. O prémio atribuído era variável em função do número “escolhido” pelo ratinho, indo de um simples chupa-chupa, a um jogo completo de tachos e panelas. Com prémios de valor tão diverso, a credibilidade do “sorteio” era muito importante.

Sendo um “ratinho inocente” a fazer essa escolha, ninguém duvidava da seriedade do sorteio decidido pelo pequeno roedor e da sua preferência. Nem eu … até ouvir o Toni. Depois de vendidas todas as rifas e quando chegava a hora do sorteio, ele era uma “peça” importante do negócio. Metia-se debaixo da mesa, escondido dos olhares indiscretos pela “saia” que tinha à volta e aguardava o anúncio da largada do ratinho no meio da mesa. Então, para atrair o roedor a um buraco com prémio de baixo valor, mas bom para o negócio, enfiava ali um pincel “barrado” de manteiga, fazendo com que o ratinho depois de farejar algumas vezes se deixasse tentar e entrasse lá.

Às vezes, para dar maior suspense à “lotaria”, durante um bocado alternava o pincel entre um buraco de prémio bom e outro de prémio mau, fazendo com que o rato oscilasse e desse uns passitos ora para um, ora para o outro, mas terminando sempre no que era bom para o negócio. Só que, um dia, cansado do trabalho e da folia, adormeceu quando o rato ia fazer a sua escolha. E, não estando condicionado pelo aroma agradável do pincel, escolheu um buraco ao acaso. Mas, azar, onde o prémio era bom (embora mau para o negócio). Foi assim que nesse dia o feliz contemplado levou para casa uma excelente prenda para toda a família, enquanto o Toni levou … um “arraial de porrada para aprender” a não voltar a dormir em momento tão importante … para o negócio.

As tômbolas do ratinho são do meu tempo de juventude e nunca me passou pela cabeça a mínima suspeita da credibilidade na escolha. Mas, afinal, havia. Sem sabermos, “comiam-nos por lorpas”, como nos continuam a “comer”.

Continuam a vender-nos imagem de seriedade, honestidade e integridade nos mais diversos aspetos da vida em sociedade e, como tendemos e temos de confiar nalguma coisa e em alguém, somos sempre “comidos de cebolada”. Basta olhar para a nossa história recente e ver no que deu confiar nos tão “impolutos” banqueiros e bancos, políticos e partidos, gestores de todo o tipo de empresas e as próprias empresas, gente com mediatismo, mas sem olhar a meios para atingir os fins, alguns disfarçados de altruístas, de espírito solidário. Até em supermercados acreditados verifiquei, por mero acaso, que se não pode confiar. Como diz o provérbio, “temos de ter um olho no cigano e outro no burro”. Ao descobrir que aquele inocente ratinho fazia parte do esquema para enganar o “Zé Pagode”, já nem sei em quem devo acreditar. Começo até a desconfiar de mim mesmo …

Mas, voltando às rifas, espero que o Agostinho não se zangue comigo por me “apropriar” da história real que me contou, onde a verdade também não deixou de ser manipulada, apesar das boas intenções. Quando há muitos anos uma companhia de circo montou a tenda em Lousada, foram pedir autorização à dona de um poço que ficava ali perto para deixar tirar a água que precisassem. A simpática senhora deixou-os à vontade para irem à água sempre que quisessem. Como permaneceram lá bastantes dias, o dono do circo mandou oferecer-lhe bilhetes para ver o espetáculo, mas ela não aceitou, alegando que a oferta da água não era motivo para se aproveitar e entrar à borla no circo. Um dia decidiu ir ver uma sessão, mas fez questão de comprar o bilhete. Durante o evento, o dono anunciou a venda de rifas para sortear um objeto – estes sorteios são uma forma de melhorarem um pouco a receita que, em regra, é baixa. A senhora ajudou, comprando algumas rifas e, quando ele retirou de um saco o papel com o número premiado, desembrulhou-o e anunciou-o ao microfone. Para surpresa e alegria da senhora, era uma das rifas que comprara. “Vejam lá”, dizia ela, “é a primeira vez na minha vida que me sai alguma coisa”. O que ela não sabia era que o dono do circo, quando a viu entre os espectadores, deu indicações à vendedora das rifas para tomar nota dos números que ela, eventualmente, viesse a comprar, como viria a acontecer. Depois, quando retirou do saco o papel com o número premiado, desembrulhou-o e, independentemente do número que lá estava escrito, só teve de anunciar como vencedor um dos números que ela comprara. Esta “desonestidade”, foi a forma encontrada pelo dono do circo para a recompensar. Mas, na realidade, não passou de uma manipulação da verdade, ludibriando todos os que compraram rifas e confiaram num sorteio honesto. Acabaram enganados, como nós o somos vezes sem conta, sem sequer imaginarmos que tal seja possível. Mas é …

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