A Procissão do Senhor de todos nós…

Fazem parte da minha infância algumas Festas, quando estas eram um momento alto das nossas vidas. As de S. Gonçalo, em Macieira, de onde sou natural, fazem-me recordar o tradicional “macaco de fogo”. As de Sto. Ovídio, em Aveleda, porque era lá que comia as primeiras uvas do ano, vindas não sei de onde. Na feira do gado, todos os anos havia “paulada de criar bicho”. As da Nossa Senhora da Saúde, em Bustelo, porque comi lá muito bons merendeiros levados por não sei quem (anos mais tarde passei a almoçar em casa de amigos. Recordo como era bom o folar que o dr. Mendes trazia lá de cima, da terra natal). As da Senhora Aparecida por ficarmos à beira da estrada (ainda em terra), em Talhos, a ver passar os que iam para a festa, especialmente as rusgas, animados grupos que vinham de longe, a cantar e a dançar, e que ali paravam para se “reabastecer” na pequena barraca da Albertininha. E as Festas Grandes de Lousada. No domingo da festa a minha mãe levava-me para ver a procissão, a que não se podia faltar. Era entalado entre a multidão que se acumulava ao longo das ruas que via desfilar diante dos meus olhos andores e anjinhos mas, sobretudo, o andor do Senhor dos Aflitos. A fechar a procissão, o pálio sob o qual o senhor padre levava a Sagrada Custódia com a Hóstia Consagrada. E à sua passagem, todos nós ajoelhávamos, em sinal de respeito e veneração. Visto à distância do tempo, o povo que se amontoava na berma das ruas fazia como que uma “onda” (semelhante à que se vê hoje nos estádios). Depois íamos até junto dos lavadouros da Vila. A minha mãe estendia a manta sobre a erva onde as lavadeiras coravam a roupa e tirava da cesta a comida para o jantar. O pai tinha comida à parte porque, como trabalhava nesse dia, nunca tinha hora de chegar. À noite, íamos ver o monte iluminado pela luz das tigelinhas.

Agora, enquanto responsável e Irmão de Misericórdia, integro a procissão. Atrás do andor com o Senhor crucifixado, tenho uma visão diferente de quando era criança. E outra percepção dos pormenores. Logo à porta da Capela organiza-se a procissão: O turíbulo, a Cruz da paróquia, juntas e associações, escuteiros, confraria, cruzes e estandartes, os andores e anjinhos, quadros bíblicos, o andor do Senhor dos Aflitos, a Irmandade da Misericórdia, cruz, acólitos e pálio, comissão de festas, bandas de música e fieis. Pum, Pum, Pum… O foguetório anuncia a saída da procissão. E os nove homens que carregam o andor, levantam o Senhor de todos nós, sim, de todos nós porque, hoje ou amanhã, todos somos ou seremos aflitos. E então, vamos lembrar-nos Dele. E avança a Procissão. Quatro bombeiros de cada lado nas suas fardas de gala e machado às costas, fazem a guarda de honra. Pum… mais uma bomba. Lá atrás a banda marca a cadência com uma marcha. Deveria dar o ritmo à procissão, mas esta não anda como um comboio, com as carruagens todas ao mesmo tempo. Para muitas vezes. O avanço é feito em movimentos ondulatórios, ora avança a frente e para a retaguarda, ora faz o contrário, algo que visto de cima seria tal e qual como uma lagarta gigante em movimento. Neste caminhar, as partes ora se aproximam, ora se afastam. E os homens que carregam os andores aproveitam para descansar. Pum… estoira mais uma bomba para anunciar que a Procissão está fora. Junto dos Bombeiros o andor é colocado de frente para o quartel, como se Cristo o quisesse abraçar. Os soldados da paz prestam-lhe homenagem e a sirene toca três vezes. Ao ver de perto, fiquei na dúvida se é uma homenagem dos Bombeiros ao Senhor dos Aflitos ou se é Ele a agradecer-lhes por serem um dos seus braços que socorrem muitos aflitos deste mundo… Pum, Pum… repetem-se as bombas com intervalos regulares. E outra banda marca a cadência do passo só com a tarola até entrar o instrumental, tocando nova marcha. Nas varandas e janelas ao longo das ruas, tal como outrora, veem-se colchas coloridas a enfeitar “o caminho do Senhor”. De algumas delas, cai uma chuva de pétalas de flores sobre o andor do Senhor dos Aflitos. Pum, mais uma bomba. E ao longo dos passeios, ininterruptamente, uma multidão impressionante de pessoas de todas as idades para ver passar a Procissão, numa atitude mais descontraída e menos reverencial que outrora, mas que atesta a realidade da nossa génese religiosa. Pum… E a banda toca mais uma marcha. Aqui e ali há pessoas que fazem o sinal da cruz ao passar o Cristo cruxificado. E, para mais tarde recordar ou para registar o momento, fazem-se muitas fotografias e gravações de imagens com telemóveis, tabletes, máquinas fotográficas… Alguns colocam-se em posições estranhas para conseguirem o melhor ângulo, a melhor imagem. Pum… Mais foguetes. Alguns rapazes ainda seguram o copo de cerveja na mão e um deles dá uma dentada num cachorro quente, antes que esfrie… Ainda estarão a festejar o europeu de futebol? Todas as barracas param de fazer barulho e respeitam a passagem da procissão. Pum, Pum… Desta vez foram duas bombas. Na Santa Casa há uma montra de idosos e colaboradores ao longo do jardim diante do Lar à passagem da Procissão, muitos deles em cadeiras de rodas. E veem o senhor bispo, D. Gilberto, sair debaixo do pálio e do Cortejo para lhes dar a bênção, num gesto raro e surpreendente. Pum, Pum, Pum… Os foguetes e morteiros estoiram no ar, anunciando o regresso do Senhor à Casa onde permanecerá até ao próximo ano, para receber e escutar as preces dos aflitos. Pum, Pum, Pum, Pum, Pum… e o foguetório acaba na girândola.

Houve momentos únicos em que todos aqueles que assistiam à Procissão, sem exceção, levantavam a cabeça ao mesmo tempo e olhavam o Céu… Às vezes, esse gesto era acompanhado por um “AH, AH, AH… E ficavam assim, de cabeça levantada, alguns de boca aberta, até… libertarem a cruz do andor do Senhor dos Aflitos quando ficava preso num dos muitos cabos de eletricidade que atravessam as ruas por onde passava.

Que se saiba, levantamos muitas vezes os olhos ao Céu, quase sempre para pedir. Porque não, também para agradecer???

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