O melhor local para o reencontro de velhos amigos é sempre à volta da mesa, de uma “boa mesa”. Mesmo que seja uma mesa simples, tosca, de bancos corridos, como era o caso. Não fomos muitos nem poucos, fomos cinco ao encontro do João Maria que não via há muitos anos e “acampamos” na mesa de bancos corridos para “embrulhar” a feijoada e os rojões no enorme “rolo” de conversa que era preciso pôr em dia. E as quatro horas que dedicamos à “função”, entre garfadas de comida e uns goles de vinho da região, foram manifestamente insuficientes, até pelo “esforço” que é preciso para “desenterrar” recordações antigas de momentos vividos em comum, já cobertos com camadas e camadas de muitos outros. À mesa estávamos três dos quatro elementos daquela que, eventualmente, terá sido a primeira “banda” do Vale do Sousa – o quarto, o meu irmão António, esteve “presente” apesar de “ausente” do nosso convívio já lá vão algumas décadas. Para além dos “músicos”, estava o nosso “pseudo empresário” (a sua “função” era mais propriamente outra), o apresentador ocasional do espetáculo que demos na antiga sala dos Bombeiros de Lousada e um outro amigo de sempre.
Deitando um olhar à volta da mesa descobri que continuamos a ter muitas coisas em comum, embora já não sejam as mesmas de outrora. Agora, comuns são os cabelos brancos ou as carecas, as “dilatações abdominais” a que alguns preferem chamar “peitos descaídos”, as cangalhas penduradas no nariz para ver ao perto, as dores de costas, nas articulações e nos ossos em geral que nos conferem poderes especiais de “previsões meteorológicas”, os esquecimentos e a “dificuldade de chegar às recordações”, “o peso do tempo” (não sabia que o tempo pesava…). Mas estas “novas” coisas em comum foram encaradas com humor, oportunidade para nos rirmos de nós próprios.
Remexemos no passado e lembramos a estreia do “conjunto” em casa da D. Palmira Meireles, com as violas e o amplificador que o Nelo trouxera da Alemanha, acompanhados pelo Zé Melo na bateria do Quim Valinhas comprada em segunda mão (não esteve presente neste “muro de recordações” mas não escapa na próxima para nos contar a sua versão do dia em que também atuou cantando “o jangadeiro”, apresentado pelo João Maria como “o homem da voz caliente”). Demos uma passagem por algumas das atuações em salas de baile da região – ainda nem se sonhava com as discotecas e as meninas só podiam ir a bailes acompanhadas dos pais – com destaque para o conceituado Clube dos Fenianos, no Porto. Relembramos os espetáculos no salão dos Bombeiros de Lousada, os “artistas” locais improvisados que participaram entusiasticamente e os “acidentes” ocorridos antes e durante as atuações, motivo para nos deixar muito nervosos na altura, motivo para nos rirmos agora. E trouxemos à conversa a “sala de ensaio improvisada” na casa que fora do senhor Adriano Neto, à espera de ser demolida para construírem o futuro (hoje, atual) palácio da justiça de Lousada, que aproveitamos durante algum tempo não só para ensaiar mas também para fazer umas farras. E falou-se das atuações no Grande Hotel da Curia, das moças de então, dos namoricos, da dança e o “corpo a corpo” tantas vezes travado pelo braço delas contra o nosso peito, os olhares vigilantes e (quase) sempre reprovadores das mães, os bailes em casas privadas com “copo de água” (os “comes”, só por si, já eram um luxo), enfim, um mundo de recordações. Compartilhamos aspetos mais íntimos e importantes, na certeza de compreensão mútua porque, com um velho amigo só se tem de ser autêntico, podendo-se falar de tudo o que nos vem à cabeça pois essa amizade não se baseia na perfeição mas no respeito e compreensão. Rachamos lembranças e recordações, alegrias e tristezas, emprestamos tempo e palavras, demos calor. Partilhamos dores e silêncios, festas e sorrisos com os sucessos de uns e de outros.
Amizades antigas ajudam a espantar a solidão, as agruras da vida e, especialmente, a velhice, até porque a amizade é como o vinho: Quanto mais velho, melhor. Velhos amigos são parte da nossa história, uma mais valia feita de bons e maus momentos que nos fizeram crescer, com quem partilhamos lugares e tivemos experiências que não queríamos que acabassem. Viajamos juntos por mais ou menos tempo, saltamos obstáculos, vivemos dificuldades, subimos e descemos os “montes da vida”, juntos corremos ou abrandamos conforme a “estrada”, descobrimos o mundo e os prazeres da vida até que um dia, na bifurcação, cada um seguiu o seu caminho. O reencontro, mais do que a saudade de rever os amigos, é a necessidade de (re)viver tudo outra vez, uma forma de regressar ao nosso interior, à tranquilidade do porto de abrigo.
Ao reencontrar velhos amigos temos, mais do que nunca, a percepção de como o tempo passou depressa, como o “outro tempo” nos está tão distante, como as recordações se esbatem quais fotografias antigas apagadas pela ação do tempo. Velhos amigos são mensageiros da juventude para nos lembrarem o quanto já caminhamos e, ao reencontrá-los, sabemos que nada mudou entre nós, ficando com o sonho, quando não a ilusão, de fazer com que a vida não nos volte a afastar e nos mantenha por perto, como no passado, esse passado de que, felizmente, guardamos mais e melhor os bons momentos. Ou não fôssemos jovens sonhadores…