As voltas que a “moral” deu…

A senhora estava escandalizada e desabafava com amigas da sua idade, falando sem parar do que vira nas noitadas e manhãs de rescaldo das Festas Grandes de Lousada. Indignou-se com o elevado número de jovens bêbados a arrastarem-se pelos cantos, estendidos atrás de sua casa e a fazerem “tristes figuras”, muitos deles que “ainda nem teriam quinze anos de idade”, que a levava a questionar “como é que os pais o permitiam” e porque seria que as autoridades não intervieram para “impedir o atropelo da lei, fechando os olhos à venda de bebidas alcoólicas a menores”. Contou ainda dos olhos vidrados dos fumadores de “charros” mas, a sua maior revolta, era pelas “poucas vergonhas” daqueles (e eram muitos) que não se inibiram de fazer sexo “à descarada”, tendo mesmo “esbarrado” com um casal em pleno “ato” na entrada de sua casa, sem que a sua presença os incomodasse ou fizesse deixar “o serviço a meio”. “Já não há moralidade nenhuma”, rematou.

Moralidade significa a adesão aos costumes considerados essenciais para a saúde e preservação da sociedade. Uns, não passam de convenções (mais praticados do que pregados) mas outros são vitais para o bem comum (mais pregados do que praticados), uma espécie de obrigações que reclamamos dos nossos vizinhos, mas às quais não nos subordinamos. A história diz-nos que as alterações económicas da vida das pessoas determinaram também mudanças no código moral. Acompanhei essa evolução com a passagem da “sociedade agrícola” para a “sociedade industrial” e “pos-industrial”. Nestas mudanças, a moral, que tinha uma variação lenta, foi sacudida pela tempestade dos tempos e alterou-se profundamente.

Quando nasci, a agricultura ainda era o suporte da economia e da vida da maioria das pessoas e a moral impunha a castidade, a monogamia sem divórcio, o casamento indissolúvel, a proibição de relações sexuais antes do casamento e o ter muitos filhos (que eram sinónimo de mão de obra gratuita). Com o aparecimento das fábricas, homens e mulheres foram “enfiados” em barracões onde passaram a travar lutas diárias com máquinas cada vez mais complexas, tantas vezes em espaços mal iluminados e sem condições, mas onde se exigia mais e mais produção em processos repetitivos e penosos, que afetaram a conduta humana. E, com a saída das mulheres de casa para as fábricas, ter filhos deixou de ser uma riqueza e passou a ser um problema. A necessidade de reduzir a prole fez surgir os contraceptivos e o sexo deixou de implicar reprodução para se tornar entretenimento e prazer, com alteração profunda do código moral.

A industrialização provocou o crescimento dos centros urbanos, que criaram todas as dificuldades para o casamento e todas as facilidades para o sexo. A repressão do desejo, possível na sociedade agrícola, tornou-se difícil numa sociedade que retarda o casamento e, inevitavelmente, a carne rebela-se e o controle de si próprio fraqueja. O cavalheirismo e a galanteria da minha infância não sobreviveram à emancipação feminina. A castidade, que era virtude, passou a motivo de zombaria e o pudor desapareceu. O homem passou a gabar-se da variedade dos seus pecados e a mulher reclamou um padrão de vida igual, sendo-lhe permitido um rosário de aventuras que tornaram comuns as relações sexuais antes do casamento. Foi assim que o velho código moral caiu aos pedaços e o mundo urbano alterou os seus julgamentos.

Leibnitz dizia que “casar-se é um ato que requer uma vida inteira de ponderação”. E os rapazes acabam por concordar com ele, de tal forma que muitos ponderam tanto, que morrem solteirões. O “dar o nó”, que antes era a forma de contentar a carne e estabilizar a conduta humana, perdeu interesse entre os candidatos, ao verem que as suas vantagens podiam ser conseguidas sem o seu ónus.. Assim, o casamento não só encurtou no início, com o atraso na idade de casar, como no fim, com a simplificação do divórcio.

O surto fabril aglomerou milhões de criaturas no anonimato protetor da vida citadina, emancipou a mulher com experiências (e práticas) sexuais antes do casamento abertamente aceites, com a benesse do avanço nos métodos contraceptivos. A riqueza afrouxou a rigidez do código moral (é que a pobreza facilita a virtude e de muitas tentações se livra o homem pelo facto de serem caras). Se antigamente se discutia se era pecado segurar a mão de uma rapariga, o pecado, hoje, é deixar fugir a oportunidade de a segurar…

Do ponto de vista moral, a visão é feita em função da idade pois condescendemos (e praticamos) enquanto jovens e pregamos quando velhos. Apesar dessas alterações profundas, os que, como eu, já perderam a mocidade mas ainda não enquistaram na velhice, devem tentar compreender os jovens e aceitar a mutação permanente da moral – cada vício já foi uma virtude e pode voltar a sê-lo, como o ódio se torna respeitável na guerra. Aceito com naturalidade a evolução dos códigos morais (não querendo com isso dizer que são melhores ou piores) mas já fico preocupado com os sinais de “amoralidade”, de ausência de moral que vamos encontrando aqui e ali, um caminho perigoso para a saúde de qualquer sociedade.

Entre muitas outras razões, admiro a minha mãe por ter uma capacidade invulgar de tolerância e aceitação das alterações a que assistiu ao longo de noventa e dois anos. Encara sempre uma nova situação, por mais insólita que seja, com naturalidade, e acha que a nossa consciência é o melhor livro de moral… e o menos consultado.

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